terça-feira, 2 de março de 2010

Os segredos de Eli Gottlieb

Em entrevista à FOLHA, o escritor norte-americano comenta seu novo romance lançado no Brasil e defende que “tudo é autobiográfico na literatura”
Eli Gottlieb não está nada ansioso. Quanto ao filme que será baseado em seu novo livro, “O homem que você vai ver”, a maior expectativa do autor estadunidense resume-se ao dinheiro: “Espero apenas receber um cheque grande, agradável e que eu possa descontá-lo”, conta o escritor, em entrevista concedida por e-mail, de Boulder, Colorado, onde vive. O produtor Jeff Sharp, que já levou “Boy´s Don´t Cry” às telonas, adquiriu os direitos para filmar o último romance de Gottlieb, mas ainda não há previsão para o início das gravações.
Há dez anos atrás, Eli Gottlieb virou uma celebridade literária ao publicar sua primeira obra, “The boy who went away” (sem tradução para o português). O autor venceu o Rome Prize, foi condecorado pela Sociedade Britânica de Autores e seu primeiro livro ainda foi eleito como romance do ano pelo New York Times.
Fortemente autobiográfico, o enredo de “The boy Who went away” mostra Fad, um garoto autista, de 15 anos, que, por apresentar imprevisíveis momentos de violência, é internado pelos pais em uma instituição longe de sua família. A história é narrada pelo irmão mais novo de Fad, Denny, o alter ego do escritor.
Em sua segunda obra, “O homem que você vai ver”, lançada em 2008 nos Estados Unidos e em 2009 aqui no Brasil, Gottlieb surge com um delicado enredo policial. Na trama, o jovem escritor Rob Castor assassina sua ex-namorada com disparos de revólver e, depois, comete suicídio. Tal como Gottlieb, Castor também ganha fama ao publicar seu primeiro livro e vive um período em que não consegue escrever sua nova obra. Mas o livro não se resume apenas ao enredo policial.
Narrado pelo amigo de Castor, Nick Framingham, “O homem que você vai ver” é, na verdade, um livro sobre relações familiares. A perspectiva pessimista da vida em família, com mentiras, segredos, falsidades e infidelidades, é retratada conforme os mistérios da obra são revelados.
Seguindo uma forte tendência da literatura contemporânea, Eli Gottlieb, assim como os norte-americanos Phillip Roth e Paul Auster, e o sul-africano J. M. Coetzee, não abre mão da influência de sua própria vida ao compor suas histórias: “É o assunto que eu conheço melhor e com mais intimidade. Muitos escritores escrevem um primeiro livro fortemente autobiográfico e, em seguida, se afastam do tema. Mas há outros, como Phillip Roth, que, simplesmente, não conseguem ficar longe. Na literatura, tudo é autobiográfico, no sentido de que todos os personagens de uma obra são retirados do cérebro do autor”, afirma o escritor.
“O homem que você vai ver” foi classificado como “um triunfo”, pelo Los Angeles Times, e “irresistível”, conforme o New York Times Book Review. Um único pecado na obra: Eli Gottlieb não precisava ter investido no romance policial. Não que pareça deslocado ou até mesmo forçado. Mas a metamorfose do narrador e o emaranhado de segredos e traições já são o bastante para prender o leitor nessa viagem pelas veredas da amizade, dos relacionamentos amorosos e da condição humana.

Serviços
Título: O homem que você vai ver
Autor: Eli Gottlieb
Editora: Rocco
Preço: 36,00 (239 págs.)
Tradução: Maira Parula
Publicada na Folha de Londrina (18/02/2010).

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Dois encontros com Dalton Trevisan, autor de "Cemitérios de Elefantes"

Publicada no Jornal do Brasil (20/02/2010)
Ele repudia o culto à celebridade. Apressa o passo de suas caminhadas matinais quando é perseguido por fotógrafos. Xinga os repórteres que, sedentos, se aproximam em busca de uma entrevista. E jamais, de forma alguma, comparece aos eventos nos quais é homenageado. Hoje aos 84 anos, o escritor Dalton Trevisan escolheu viver nas sombras, no silêncio que somente o anonimato pode propiciar.
O sonho de qualquer jornalista? Uma entrevista exclusiva. Quando isso vai acontecer? Nunca. Então, para arrancar algumas palavras do Vampiro de Curitiba – apelido devido ao seu livro homônimo, lançado em 1965 – traço a estratégia: encarar os 428 quilômetros que separam minha cidade, Maringá (PR), de Curitiba, omitir ser estudante de jornalismo e torcer para o contista sair de casa. Se chover, o plano vai por água abaixo: como armar a tocaia em frente à casa do enigmático Trevisan?
Às 8h entro, pontualmente, no táxi que me levará ao bairro Alto da Glória – um nome digno para acomodar o maior contista brasileiro vivo. No curto caminho que separa a casa de Dalton da rodoviária, pergunto ao taxista se é verdade que o famoso escritor reside por ali.
– Dizem que mora sim, mas ninguém nunca o viu – responde o curitibano, seco, sem tirar os olhos do volante.
Chamando à porta de casa
Uma leve garoa atinge os transeuntes que atravessam a movimentada esquina onde reside o escritor. Para quem escreve sobre violência, assassinatos, drogas, prostituição, pedofilia e fetiches sexuais, Dalton Trevisan escolheu um lar ideal: grande e antigo, totalmente cinza, cercado por árvores que funcionam como barreiras aos curiosos que se penduram no muro, a fim de tentar espiar o tão misterioso autor. Estranhices à parte, não há barulho algum dentro da casa. Uma única luz acesa, no corredor, indica que ela não está abandonada.
Com um olhar mais atento sobre o puxadinho de trás, é possível observar que as janelas estão, desde cedo, escancaradas. Em julho do ano passado, quando passava, descompromissadamente, perto da residência do escritor, resolvi mudar meu roteiro e chamar ao portão. Sem campainha, tive de bater palmas e gritar seu nome. Para minha surpresa, o Vampiro abriu uma fresta da porta, deixando o rosto parcialmente escondido, protegido de algum flash que eu, rapidamente, poderia disparar. Mostrei três livros para que ele viesse ao meu encontro: “Deixe na livraria do Chain!”, gritou, antes de bater a porta na cara do petulante.
Agora a situação é diferente. Permaneço em silêncio, atento a cada movimento. Sorte minha: não chove. Precisamente às 10h50, Dalton Trevisan abre a porta de sua casa. Debaixo do braço, ele carrega alguns livros. Com passos rápidos, o ágil senhor de 84 anos caminha em direção à Livraria do Chain, local em que troca mensagens com sua editora e autografa os livros deixados por seus leitores.
Cinco minutos é o tempo que o Vampiro permanece na livraria, observando os lançamentos e deixando as edições que trazia de sua casa. Ele sai, agora, sempre taciturno; caminha geralmente olhando para baixo, e nunca se distrai com as belas curitibanas que passam ao seu lado ou cruzam sua frente.
É assim que observa os detalhes de Curitiba, cidade mitificada em suas obras: quieto, sem gestos bruscos, imperceptível. Passa pelo Teatro Guaíra e dá uma volta e meia na praça em frente à Universidade Federal, num cenário em que namorados, mendigos, hippies, empresários e turistas convivem em harmonia.
Quando passa por alguma banca de revista, para por cerca de dois ou três minutos, contemplando as notícias dos exemplares à mostra. Misturado aos curitibanos, o Vampiro escuta camuflado as novelas nada exemplares da vida urbana, como um anônimo ladrão de histórias. E volta a caminhar. Cruza semáforos, em meio a um trânsito caótico, driblando barracas de camelôs, passando por botecos, padarias, pontos de ônibus, deficientes físicos, filas de aposentados e indivíduos suspeitos.
Estou preparado para ficar cara a cara com o Vampiro. O local da abordagem? Uma esquina bem no Centro da cidade. No meu primeiro encontro, em janeiro de 2009, identifiquei-me como aspirante a escritor e revelei estudar letras (omiti estudar também jornalismo). Se ele sente qualquer intenção jornalística, foge como se lhe exibissem uma cruz. Trevisan, há um ano, na esquina de sua residência, me convidou a ir até à livraria, pois compraria alguns livros para mim. Antes, porém, perguntei como ele gostaria de ser lembrado daqui a 40 anos. A resposta, que arrancou uma boa gargalhada minha, foi surpreendente:
– Daqui a 40 anos, ninguém se lembrará de mim.
Eu o contestei imediatamente. Não adiantou nada:
– Essa sua opinião é uma opinião isolada.
No rápido trajeto, o contista revelou uma listinha com seus livros prediletos e fez críticas concisas às obras.
O poeta alemão Rainer Maria Rilke, com Cartas a um jovem poeta, foi o primeiro a ser citado:
– Nas cartas dedicadas ao jovem poeta, ali está tudo o que você pode aprender sobre inspiração, escrita e linguagem – afirma Trevisan.
A metamorfose, do também alemão Franz Kafka, foi considerada como “uma história incrível” e
A morte de Ivan Ilitch, do russo Liev Tolstói, “a melhor novela já feita”, na opinião do contista.Dentro da livraria, Trevisan elogiou outro contista:
– Leia tudo o que puder do russo Anton Tchecov. Aliás, existem boas coletâneas de suas obras.
No campo da poesia, o Vampiro indicou o pernambucano Manuel Bandeira, um dos seus prediletos:
– O estilo e a linguagem dele são maravilhosos. As crônicas também são boas. Leia Crônicas da província do Brasil e Os reis vagabundos.
E para o Vampiro, quem é o maior contista brasileiro?
– Machado de Assis. Além dos contos, leia Quincas Borba, Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro.
Depois de Machado, indagou-me se eu gostava de Rubem Braga. A última obra citada , classificada como “maravilhosa”, foi Madame Bovary, de Gustave Flaubert.
Em meio a tantos clássicos, o Vampiro seria capaz de reescrever as histórias melhor do que os próprios autores? A resposta é negativa:
– Ninguém pode reescrever A metamorfose melhor do que Kafka. Ninguém vai reescrever A morte de Ivan Ilitch melhor do que Tolstói.
Naquela manhã, ganhei dois presentes de Dalton Trevisan: duas edições pockets das obras citadas de Tolstói e Rilke. Outros livros, solicitados pelo contista, estavam fora do catálogo. Na frente do Vampiro, a atendente se comprometeu a conseguir os livros para eu buscá-los no dia seguinte. Ao encerrar o encontro, o contista estendeu a mão e abriu um sorriso. Semanas depois, entrei em contato com a livraria, passei meu endereço em Maringá e recebi, em minha casa, outras quatro edições de bolso enviadas pelo contista: Kafka, Tchecov, Machado e Dalton.
Jamais imaginaria que eu teria a chance de encontrá-lo novamente. Ele deve ter se irritado. A reportagem relatando nosso encontro foi publicada em um jornal do Paraná. Depois da publicação, enviei um outro livro para ele autografar, alguns contos de minha autoria e uma carta agradecendo pelas edições enviadas e também por sua produção literária. Todo o material foi reenviado para mim. No livro, nenhum autógrafo. Da mesma forma que foi, voltou. Era a primeira vez, em três décadas, que o contista concedia alguma declaração à imprensa.
Agora, quase um ano depois do primeiro encontro, eu me aproximo com três livros para serem assinados. Estamos em uma movimentada esquina. O sinal fecha.
– Dalton? – eu pergunto. Ele vira e me olha desconfiado. Peço um autógrafo nos três livros que retiro de dentro de uma sacola plástica.
Ao se deparar com uma rara primeira edição de Cemitério de elefantes, publicada em 1964, o contista reclama:
– Mas esta edição eu renego! Já reescrevi diversas vezes!
A curiosa cena protagonizada pelo autor, fanático por recompor suas obras em novas edições, extirpando uma ou outra conjunção, sempre reduzindo o tamanho dos contos, arranca uma risada minha. Peço que ele autografe mesmo assim. Dalton olha para trás, onde há uma pequena padaria, e indica o balcão:
– Vamos ali, para firmar os livros.
Na dedicatória, ele pede meu sobrenome, mas me recuso a dizer.
– Basta só Alexandre? – indaga o mestre da concisão e, diante da minha afirmativa, diz sorrindo:
– Então tá, só Alexandre.
Com o tempo, Trevisan padronizou seus autógrafos: “Ao (nome), cordialmente, D. Trevisan”. Agora, se há uma intimidade, o Vampiro muda: “Ao (nome), com um abraço do D. Trevisan”. E ele só rabisca a dedicatória em um dos livros. Nos seguintes, deixa apenas a assinatura. Na década de 60, quando iniciou sua trajetória literária, era diferente. Ele sempre era afetuoso na dedicatória e não assinava seu sobrenome, apenas Dalton.
Antes de encerrar o encontro, o contista indaga:
– Como você me achou aqui no Centro?
É claro que não digo que estou perseguindo-o há cerca de meia hora. Sem desviar o olhar, relembro um trecho de uma entrevista concedida nos anos 60, em que o próprio Trevisan contestava a fama de recluso. Cara a cara com o Vampiro, parafraseio sua declaração: “É possível encontrar Dalton Trevisan em cada esquina de Curitiba”. Ponto para mim. Arranco outro sorriso do autor, que observa:
– E você confirmou isso mesmo!.
Na padaria, ele estende a mão, compassadamente, e sorri:
– É sempre bom encontrar um leitor .
O escritor retoma a caminhada sem olhar para trás. Dalton Trevisan nunca olha para trás. Volto a segui-lo. Ele entra em um restaurante vegetariano. Sozinho. É muita ironia: um vampiro que se abstém de carne. Na volta para casa, meia hora depois, ele escolhe o mesmo trajeto e circula pelas mesmas praças, até enfrentar a íngreme rua que o leva à sua residência. Deixo o Alto da Glória com os livros assinados e algumas imagens do recluso contista. Curiosamente, não são as palavras do nosso encontro que ecoam na minha cabeça. Mas, sim, um excerto de sua nova obra, Violetas e pavões: “O senhor esconde o rosto desta cidade, mas não de mim”.
Alexandre Gaioto é jornalista freelancer e já colaborou com os jornais Diário do Norte do Paraná, Folha de Londrina, O Estado do Paraná, Gazeta do Povo e Zero Hora.
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2010/02/20/e20028216.asp

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A Manaus de Hatoum

Em "A cidade ilhada", livro de contos do amazonense Milton Hatoum, Manaus é o centro de suas tramas delicadas, poéticas e surpreendentes
É comum um escritor iniciar sua trajetória literária publicando contos. E, depois, com a experiência adquirida nas histórias curtas, partir para a composição de narrativas mais longas, dedicando-se à novela ou ao romance. Com o amazonense Milton Hatoum, autor do aclamado “Dois irmãos”, o trâmite foi diferente.
Seu primeiro livro publicado, o romance “Relato de um certo oriente” (1989), foi bem acolhido pela crítica especializada, venceu o prêmio Jabuti e, desde aquela época, já mostrava algumas características literárias que reapareceriam em suas obras, como o regionalismo, a prosa poética e o objetivo de imortalizar Manaus.
Depois de três Jabutis seguidos – além de “Relato de um certo oriente”, os romances “Dois irmãos” (2000) e “Cinzas do Norte” (2005) também foram contemplados com o prêmio –, o escritor apostou no diferente.
No ano passado, a Companhia das Letras lançou “A cidade ilhada”, volume reunindo alguns de seus contos publicados em jornais e revistas, no período de 1990 e 2008, além das histórias inéditas. Tanto na novela “Órfãos do Eldorado”, publicada há dois anos, quanto nos contos, Milton Hatoum revela-se um autor saboroso em suas concisões. Seu ritmo de narrativa delicado conduz, sempre com belas imagens, as 14 histórias de “A cidade ilhada”.
No primeiro conto, Hatoum regressa à Manaus de sua infância para compor, com pureza e inocência, sobre a primeira noite de um grupo de jovens amigos no prostíbulo “Varandas da Eva”. Tal como o grupo de amigos que vai ao balneário das mulheres, praticamente todos os personagens do livro estão em Manaus.
Em “Dois poetas da província”, Hatoum resgata a passagem do filósofo Jean-Paul Sarte por Manaus; “Um oriental na vastidão” mostra a bonita história de um cientista japonês que viaja à Manaus apenas para conhecer as águas do rio Negro – local onde, futuramente, ele escolherá para morrer; um jornalista indiano, disfarçado de almirante, faz uma visita a um escritor de Manaus – Milton Hatoum? – a fim de publicar, na Índia, um perfil sobre autor.
Na cidade de Hatoum, os homens defendem sua honra com vingança e cabeça em pé. Nos contos “O adeus do comandante” e “A casa ilhada”, o escritor traça dois perfis completamente diferentes para dois homens traídos por suas respectivas mulheres. No primeiro, um simples barqueiro, numa lúgubre viagem de barco, assassina o próprio irmão após descobrir os casos de infidelidade envolvendo sua esposa: “Salvei minhas honras e tirei a vergonha dos meus três filhos”, explica o personagem. Já em “A casa ilhada”, um renomado biólogo retorna à Manaus para matar o homem que seduziu sua mulher e arruinou o início do seu casamento. Assim, o contista une, no mesmo nível, o intelectual ao homem simples: ambos traídos à beira do rio Amazonas.
Tal como Dalton Trevisan mitificou Curitiba e João Ubaldo Ribeiro, a ilha de Itaparica, o escritor amazonense se dedica às peripécias de sua região, com os seus costumes, tradições, gírias, pratos típicos e lendas: é o comportamento subversivo do jovem artista Mundo, do romance “Cinzas do Norte”; são as brigas constantes dos gêmeos Yaqub e Omar, em “Dois Irmãos”; é o retrato da decadência na vida de Arminto Cordovil, em “Órfãos do Eldorado”.
As delicadas histórias de Milton Hatoum, em “A cidade ilhada”, poderiam acontecer em qualquer lugar do mundo. Mas o contista não abre mão de sua terra. É em Manaus - ou numa pequena cidade à beira do rio Amazonas – que suas tramas são ambientadas e desenvolvidas.
Milton Hatoum segue o conselho do autor russo Leon Tolstoi: “Cante a tua aldeia e serás imortal”.
Publicada em O Diário do Norte do Paraná (27/01/10).

Na estrada do terror, com Cormac McCarthy

Nas tradicionais listinhas de fim de ano, o jornal britânico “The Times” resolveu elencar os cem melhores livros da década. Nada muito fora do comum: Phillip Roth, Ian McEwan, Salman Rushdie e J. M. Coetzee. Estranho foi contemplar, na terceira posição, o best-seller “O Código da Vinci”, de Dan Brown. Irônico é que o mesmo livro foi vencedor em outra categoria: os cinco piores livros da década.
No primeiro lugar, o “The Times” fez justiça apontando “A Estrada”, do norte-americano Cormac McCarthy. Frequentemente comparado a Herman Melville e William Faulkner, McCarthy escreveu uma dezena de romances, entre eles “Onde os velhos não têm vez” (2005), “Todos os belos cavalos” (1992) e “Meridiano sangrento” (1985) – considerado um dos melhores romances do século 20, na opinião do crítico literário Harold Bloom.
Publicado em 2006, vencedor do Prêmio Pulitzer de 2007, “A estrada” é aterrorizante. Não é possível saber em que ano, exatamente, a história se passa. Algumas pequenas marcas de tempo, como uma garrafa de Coca-Cola, indicam que a história não está situada em um passado longínquo. É uma América pós-apocalíptica, em que já não resta quase nada no mundo. Todas as casas e prédios estão abandonados, destruídos. Os supermercados foram saqueados e os poucos vivos que circulam, costumam se alimentar de seres humanos, andando em bandos à procura de carne fresca.
O livro, narrado em terceira pessoa, traz basicamente dois personagens, o pai e seu jovem filho – eles não têm nomes. Cormac McCarthy abriu mão de nomeá-los, para que a situação vivida pela dupla seja ainda mais universal. Devido ao intenso frio em que estão vivendo, resolvem seguir a estrada, rumo ao sul, a pé, em busca de uma chance de sobrevivência.
O que vão encontrar por lá? Gangues, assassinos ou pessoas que, assim como eles, são do bem? Eles não sabem. A dupla carrega um carrinho de compras e duas mochilas com alguns produtos essenciais para garantir, temporariamente, suas vidas. Nas mãos do pai, um revólver com apenas duas balas: uma possível solução para o drama da dupla.
Como a proposta do autor é narrar, em 234 páginas, os meses do percurso dos personagens, McCarthy optou por separar a narrativa em pequenos e médios blocos de texto. Assim, o narrador coordena os momentos em que o tempo avança ou permanece estagnado na história.
Em cada momento em que a dupla identifica uma casa – ou o que sobrou dela –, o clima de suspense desperta. Não é possível continuar seguindo o caminho, sem antes tentar encontrar na residência algo para comer ou algum objeto que possa servir para alguma finalidade. Se a casa ainda estará habitada ou não, é um risco que eles correm.
No primeiro encontro com outro personagem, um integrante de uma gangue canibal, a vida do garoto é posta em risco e o pai faz um disparo contra o inimigo. Resta, então, a partir daí, apenas uma bala para aliviar o sofrimento dos dois, um sofrimento que ainda não chegou no limite.
O desejo pela morte é levado ao extremo em apenas uma cena. Num dos momentos em que vasculham uma casa, pai e filho descobrem uma horripilante prisão de humanos. No mesmo instante, os responsáveis pela casa chegam e os dois fogem sem conseguir salvar os encarcerados. Enquanto permanecem escondidos, o pai pede ao filho que, se forem capturados, ele seja capaz de cometer o suicídio, utilizando a única bala que resta na arma.
“Você consegue fazer isto? Quando o momento chegar? Quando o momento chegar não vai haver tempo. O momento é agora. Amaldiçoe Deus e morra. E se não disparar? Você poderia esmagar esse crânio adorado com uma pedra? Há um ser dentro de você sobre o qual você não sabe nada? Será possível? Segure-o nos braços. Assim mesmo. A alma é rápida. Puxe-o na sua direção. Beije-o. Rápido.”
Na estrada de McCarthy, mesmo caminhando no clima de suspense, suportando um frio de congelar a espinha do leitor, os dois personagens conseguem construir uma relação de amor e amizade entre si: é Isso o que faz de “A Estrada”, uma obra-prima.
Para ler:
“A Estrada”, de Cormac McCarthy (Alfaguara, 234 págs, 36,90).
Tradução de Adriana Lisboa.
Avaliação: Excelente.

Da roça para o Big Brother

Filho de agricultor e cabeleireira, o engenheiro agrônomo maringaense, Eliéser Ambrósio, 25, é o galã da nova edição do programa
Quando Eliéser Ambrósio decidiu se aventurar no universo da moda, em 2003, teve de ir contra o seu próprio pai: “Não apoiei a ideia dele porque eu tinha preconceito com esse meio, por ter muito homossexuais”, revela o agricultor Valdir Ambrósio, 50.
Na época, Eliéser ainda cursava o curso de Agronomia, na Universidade Estadual de Maringá. Se dependesse da vontade paterna, o modelo também seria agricultor: “Sempre quis que ele seguisse meu caminho, que ficasse na roça comigo”, conta o pai. A confiança no seu próprio potencial revela um pouco da personalidade do participante da edição do Big Brother Brasil 10.
O primeiro convite para desfilar surgiu por acaso. Eliéser malhava, tranquilamente, em uma academia, quando foi abordado por um dos organizadores do concurso Miss e Mister Maringá. O resultado? Foi contemplado com o segundo lugar, mesmo sem dominar os macetes da passarela. Daí em diante, conciliou o curso de Agronomia com a vida de modelo fotográfico e foi eleito Mister Goioerê e Mister Ecologia do Paraná.
Eliéser Ambrósio nasceu em Maringá, mas, logo nos seus primeiros dias de vida, foi levado à cidade de São João do Ivaí, onde viveu até os 14 anos. Com essa idade, o garoto que sonhava em ser médico conseguiu uma bolsa de estudos, em um colégio em Maringá, graças ao seu talento como jogador de vôlei.
No colégio, ele não passou em branco. A maringaense Thais Pimenta, 21, lembra que, ainda jovem, o modelo já despertava paixões e euforia nas estudantes. Ela recorda que, em 2004, formou um par com Eliéser, durante uma dança numa festa de debutante: “Causei inveja nas minhas amigas porque todas morriam de paixão por ele”. Thais acredita que “todos vão gostar dele no programa”, e elogia o colega, relembrando a noite: “ele era um bom dançarino”.
Perguntar por Eliéser a amigos, colegas e parentes, é esbarrar na mesma característica: bom humor. Juliana Mendes, 19, diz que o amigo sempre consegue provocar o riso das pessoas que estão à sua volta: “Ele é muito simpático, carismático, engraçado, faz amizade com as pessoas em todos os lugares em que está”. Ela conta que Eliéser também faz imitações do personagem de desenho animado, Bob Esponja, e do ex-apresentador Clodovil Hernandes.
O primo de segundo grau, Victor Hugo Ambrósio, 24, lembra uma das peças pregadas por Eliéser, ao ser aprovado no vestibular para Agronomia, em Maringá: “Ele escreveu ‘medicina’ na testa e saiu na rua para pedir dinheiro com o pessoal. No dia seguinte, o jornal da cidade mostrou a foto dele bem na capa. Todos os parentes e amigos ligaram, dando os parabéns para os pais e até para a avó dele!”, lembra, em meio a risadas.
E a série de histórias engraçadas continua. No meio da festa de sua formatura, Eliéser interrompeu a apresentação da banda e pediu para dar uma notícia séria. Quando todos ficaram em silêncio, o modelo disparou: “meu pai tem bigode!”. Na mesma noite, quando entrava no salão acompanhado de sua mãe, surpreendeu a todos ao deitar no chão e iniciar uma sessão de flexões.
Publicada na Folha de Londrina (12/01/10).

Na onda do Charme Chulo

Quarteto curitibano que mistura rock com música caipira se apresenta hoje, em Maringá

Prepare o chapéu de palha, a calça jeans, arrume uma camisa xadrez e calce um confortável par de botas: O Charme Chulo está de volta a Maringá. Considerado um dos grandes nomes do rock independente brasileiro, o grupo lança hoje à noite, no MPB Bar, seu segundo álbum de músicas inéditas. Intitulado “Nova onda caipira”, o disco é uma mistura de rock com música caipira, e consegue superar o primeiro CD, “Charme Chulo” (2007), responsável por projetar o nome do quarteto no cenário musical.
Como em toda banda que enfrenta a gravação do segundo álbum, o Charme Chulo também viveu o medo de não fazer algo à altura do trabalho inicial: “Foi um grande desafio porque a gente teve menos tempo para conceber o disco, diferentemente do CD de estreia, que foi uma coletânea da nossa vida até aquele momento”, observa o vocalista e compositor Igor Filus.
Nas 11 faixas do “Nova onda caipira”, que é distribuído pelo selo Volume 1, o quarteto surpreende. Além do amadurecimento musical, a banda cresceu também nas composições das letras. Em “Moda do Acerto”, uma divertida moda de viola, a violência urbana é retratada com boas doses de humor. A classe política, pela primeira vez, é ironizada nos versos da canção “Brasil sacanagem”. Tudo, é claro, com melodias originais e riffs dançantes, como na excelente “Fala comigo, Barnabé!”.
Explorando o regionalismo como temática, Igor Filus revela sua paixão por Maringá, cidade onde nasceu, homenageando o lendário time de futebol maringaense da década de sessenta, com a balada “Galo Maringá”.
O grupo não é o único a explorar o hibridismo entre a música caipira e a influência do rock oitentista. O som produzido pelas bandas Supercordas (SP), Matuto Moderno (SP), Os Pamonheiros (SP) e Bico do Corvo (MG), faz com que o vocalista do Charme Chulo vislumbre “um movimento novo” no rock nacional: “Há uma onda de bandas que usam violão e sons mais acústicos, com influências da música caipira e que estão no underground”, ressalta.
Além de tudo, a apresentação da banda é uma grande diversão, com direito a dancinhas desengonçadas de Igor Filus e covers dos ídolos Tonico e Tinoco – eles costumam executar “Moreninha Linda”, um dos sucessos consagrados da dupla.
Serviço:
Quando – Hoje, 22h.Onde – MPB Bar, Av. Curitiba, 210, Zona 4, em Maringá. Quanto – R$ 15 ou R$ 10 (antecipado) na Livraria Espaço, no shopping Maringá Park.
Publicada na Folha de Londrina (04/12/09).

O amor e as mortes de Rubem Fonseca

Em “O Seminarista”, escritor mineiro homenageia sua atual namorada e envolve o leitor em uma trama inteligente e cheia de assassinatos
Papai Noel é o primeiro a morrer com uma bala na cabeça. Em uma cena antológica, José Rubem Fonseca inicia “O Seminarista”, seu novo romance policial, escrevendo sobre o assassinato de um sujeito fantasiado de Bom Velhinho, em plena véspera do Natal.
Em “O Seminarista”, Rubem Fonseca cria o José, um matador de aluguel conhecido como O Especialista, que recebe de um personagem chamado Despachante as ordens para realizar uma série de assassinatos. Assim, O Especialista conta, concisamente, alguns de seus “trabalhos específicos” que, além do Papai Noel, incluem um pedófilo, um assassino profissional e um necrófilo.
Depois de assaltar o pedófilo e matá-lo, no segundo assassinato do livro, a figura de José começa a ganhar contornos de um anti-heroi. O protagonista concede uma carona ao garoto que estava no apartamento do pedófilo, leva-o até sua casa, na favela, dá o dinheiro roubado do pedófilo à mãe do garoto e a ameaça: “Se você não tomar conta direito dos seus filhos eu te arrebento, entendeu? E se for viver com um gigolô que vai roubar a sua grana eu mato vocês dois”. É mais um inesquecível personagem fonsequiano.
O assassino abandona o emprego aos 40 anos de idade e revela ter a “consciência pesada”, devido aos crimes que cometeu em sua trajetória. Mas a sua rotina de aposentado muda com a presença de Kirsten, uma jovem alemã que traduz livros do português para o alemão. Na vida real, Rubem Fonseca, a exemplo de José, O Especialista, também namora uma jovem alemã que traduz livros da língua portuguesa para o alemão. Dessa forma, o escritor homenageia e imortaliza sua atual namorada em uma obra que, provavelmente, ela mesma traduzirá para a edição alemã.
Após o início do romance – no livro – de José com Kirsten, o protagonista descobre que ela é filha do Despachante e que, inicialmente, cumpria a tarefa de espioná-lo. Descobre, também, ser alvo de perseguição, devido ao desaparecimento de um CD, contendo informações sigilosas e comprometedoras que estava na casa de uma de suas vítimas.
Nesse ponto da obra, Despachante, Kirsten e José passam a investigar o destino do objeto, enquanto a morte se aproxima do trio a passos céleres. Tudo, é claro, conduzido por um enredo inteligente e misterioso.
Na intensidade do amor e da violência, o escritor insere, na fala de O Especialista, algumas citações bíblicas e excertos poéticos em latim e em outras línguas, de autores como Cícero, Horácio, Sêneca, Camões, Propércio, Petrarca, Salústio, entre outros.
A poesia e os fragmentos de pensamentos pipocavam na cabeça do matador de aluguel desde o tempo em que ele frequentou o seminário e abandonou a vida dedicada à igreja, “por ser um sujeito libidinoso”. A presença das citações é tão frequente, que até mesmo um dos personagens critica o costume de José: “Essa tua mania de falar latim enche o saco”.
O uso de citações é uma estratégia necessária de Rubem Fonseca para mergulhar o leitor na complexidade psicológica do assassino de aluguel. Afinal, a violência, na obra fonsequiana, nunca é gratuita.
Aos 84 anos, Rubem Fonseca continua a provocar seus leitores com doses cavalares de sarcasmo, inteligência, erudição e, além de tudo, uma boa história: receita que o consagrou como O Especialista do romance policial na literatura brasileira.
Título: “O Seminarista”
Autor: Rubem Fonseca
Editora: Agir
Preço: R$ 36,00 (181 págs.)
Avaliação: Excelente
Publicado em O Diário do Norte do Paraná (25/11/09).