terça-feira, 2 de março de 2010

Os segredos de Eli Gottlieb

Em entrevista à FOLHA, o escritor norte-americano comenta seu novo romance lançado no Brasil e defende que “tudo é autobiográfico na literatura”
Eli Gottlieb não está nada ansioso. Quanto ao filme que será baseado em seu novo livro, “O homem que você vai ver”, a maior expectativa do autor estadunidense resume-se ao dinheiro: “Espero apenas receber um cheque grande, agradável e que eu possa descontá-lo”, conta o escritor, em entrevista concedida por e-mail, de Boulder, Colorado, onde vive. O produtor Jeff Sharp, que já levou “Boy´s Don´t Cry” às telonas, adquiriu os direitos para filmar o último romance de Gottlieb, mas ainda não há previsão para o início das gravações.
Há dez anos atrás, Eli Gottlieb virou uma celebridade literária ao publicar sua primeira obra, “The boy who went away” (sem tradução para o português). O autor venceu o Rome Prize, foi condecorado pela Sociedade Britânica de Autores e seu primeiro livro ainda foi eleito como romance do ano pelo New York Times.
Fortemente autobiográfico, o enredo de “The boy Who went away” mostra Fad, um garoto autista, de 15 anos, que, por apresentar imprevisíveis momentos de violência, é internado pelos pais em uma instituição longe de sua família. A história é narrada pelo irmão mais novo de Fad, Denny, o alter ego do escritor.
Em sua segunda obra, “O homem que você vai ver”, lançada em 2008 nos Estados Unidos e em 2009 aqui no Brasil, Gottlieb surge com um delicado enredo policial. Na trama, o jovem escritor Rob Castor assassina sua ex-namorada com disparos de revólver e, depois, comete suicídio. Tal como Gottlieb, Castor também ganha fama ao publicar seu primeiro livro e vive um período em que não consegue escrever sua nova obra. Mas o livro não se resume apenas ao enredo policial.
Narrado pelo amigo de Castor, Nick Framingham, “O homem que você vai ver” é, na verdade, um livro sobre relações familiares. A perspectiva pessimista da vida em família, com mentiras, segredos, falsidades e infidelidades, é retratada conforme os mistérios da obra são revelados.
Seguindo uma forte tendência da literatura contemporânea, Eli Gottlieb, assim como os norte-americanos Phillip Roth e Paul Auster, e o sul-africano J. M. Coetzee, não abre mão da influência de sua própria vida ao compor suas histórias: “É o assunto que eu conheço melhor e com mais intimidade. Muitos escritores escrevem um primeiro livro fortemente autobiográfico e, em seguida, se afastam do tema. Mas há outros, como Phillip Roth, que, simplesmente, não conseguem ficar longe. Na literatura, tudo é autobiográfico, no sentido de que todos os personagens de uma obra são retirados do cérebro do autor”, afirma o escritor.
“O homem que você vai ver” foi classificado como “um triunfo”, pelo Los Angeles Times, e “irresistível”, conforme o New York Times Book Review. Um único pecado na obra: Eli Gottlieb não precisava ter investido no romance policial. Não que pareça deslocado ou até mesmo forçado. Mas a metamorfose do narrador e o emaranhado de segredos e traições já são o bastante para prender o leitor nessa viagem pelas veredas da amizade, dos relacionamentos amorosos e da condição humana.

Serviços
Título: O homem que você vai ver
Autor: Eli Gottlieb
Editora: Rocco
Preço: 36,00 (239 págs.)
Tradução: Maira Parula
Publicada na Folha de Londrina (18/02/2010).

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Dois encontros com Dalton Trevisan, autor de "Cemitérios de Elefantes"

Publicada no Jornal do Brasil (20/02/2010)
Ele repudia o culto à celebridade. Apressa o passo de suas caminhadas matinais quando é perseguido por fotógrafos. Xinga os repórteres que, sedentos, se aproximam em busca de uma entrevista. E jamais, de forma alguma, comparece aos eventos nos quais é homenageado. Hoje aos 84 anos, o escritor Dalton Trevisan escolheu viver nas sombras, no silêncio que somente o anonimato pode propiciar.
O sonho de qualquer jornalista? Uma entrevista exclusiva. Quando isso vai acontecer? Nunca. Então, para arrancar algumas palavras do Vampiro de Curitiba – apelido devido ao seu livro homônimo, lançado em 1965 – traço a estratégia: encarar os 428 quilômetros que separam minha cidade, Maringá (PR), de Curitiba, omitir ser estudante de jornalismo e torcer para o contista sair de casa. Se chover, o plano vai por água abaixo: como armar a tocaia em frente à casa do enigmático Trevisan?
Às 8h entro, pontualmente, no táxi que me levará ao bairro Alto da Glória – um nome digno para acomodar o maior contista brasileiro vivo. No curto caminho que separa a casa de Dalton da rodoviária, pergunto ao taxista se é verdade que o famoso escritor reside por ali.
– Dizem que mora sim, mas ninguém nunca o viu – responde o curitibano, seco, sem tirar os olhos do volante.
Chamando à porta de casa
Uma leve garoa atinge os transeuntes que atravessam a movimentada esquina onde reside o escritor. Para quem escreve sobre violência, assassinatos, drogas, prostituição, pedofilia e fetiches sexuais, Dalton Trevisan escolheu um lar ideal: grande e antigo, totalmente cinza, cercado por árvores que funcionam como barreiras aos curiosos que se penduram no muro, a fim de tentar espiar o tão misterioso autor. Estranhices à parte, não há barulho algum dentro da casa. Uma única luz acesa, no corredor, indica que ela não está abandonada.
Com um olhar mais atento sobre o puxadinho de trás, é possível observar que as janelas estão, desde cedo, escancaradas. Em julho do ano passado, quando passava, descompromissadamente, perto da residência do escritor, resolvi mudar meu roteiro e chamar ao portão. Sem campainha, tive de bater palmas e gritar seu nome. Para minha surpresa, o Vampiro abriu uma fresta da porta, deixando o rosto parcialmente escondido, protegido de algum flash que eu, rapidamente, poderia disparar. Mostrei três livros para que ele viesse ao meu encontro: “Deixe na livraria do Chain!”, gritou, antes de bater a porta na cara do petulante.
Agora a situação é diferente. Permaneço em silêncio, atento a cada movimento. Sorte minha: não chove. Precisamente às 10h50, Dalton Trevisan abre a porta de sua casa. Debaixo do braço, ele carrega alguns livros. Com passos rápidos, o ágil senhor de 84 anos caminha em direção à Livraria do Chain, local em que troca mensagens com sua editora e autografa os livros deixados por seus leitores.
Cinco minutos é o tempo que o Vampiro permanece na livraria, observando os lançamentos e deixando as edições que trazia de sua casa. Ele sai, agora, sempre taciturno; caminha geralmente olhando para baixo, e nunca se distrai com as belas curitibanas que passam ao seu lado ou cruzam sua frente.
É assim que observa os detalhes de Curitiba, cidade mitificada em suas obras: quieto, sem gestos bruscos, imperceptível. Passa pelo Teatro Guaíra e dá uma volta e meia na praça em frente à Universidade Federal, num cenário em que namorados, mendigos, hippies, empresários e turistas convivem em harmonia.
Quando passa por alguma banca de revista, para por cerca de dois ou três minutos, contemplando as notícias dos exemplares à mostra. Misturado aos curitibanos, o Vampiro escuta camuflado as novelas nada exemplares da vida urbana, como um anônimo ladrão de histórias. E volta a caminhar. Cruza semáforos, em meio a um trânsito caótico, driblando barracas de camelôs, passando por botecos, padarias, pontos de ônibus, deficientes físicos, filas de aposentados e indivíduos suspeitos.
Estou preparado para ficar cara a cara com o Vampiro. O local da abordagem? Uma esquina bem no Centro da cidade. No meu primeiro encontro, em janeiro de 2009, identifiquei-me como aspirante a escritor e revelei estudar letras (omiti estudar também jornalismo). Se ele sente qualquer intenção jornalística, foge como se lhe exibissem uma cruz. Trevisan, há um ano, na esquina de sua residência, me convidou a ir até à livraria, pois compraria alguns livros para mim. Antes, porém, perguntei como ele gostaria de ser lembrado daqui a 40 anos. A resposta, que arrancou uma boa gargalhada minha, foi surpreendente:
– Daqui a 40 anos, ninguém se lembrará de mim.
Eu o contestei imediatamente. Não adiantou nada:
– Essa sua opinião é uma opinião isolada.
No rápido trajeto, o contista revelou uma listinha com seus livros prediletos e fez críticas concisas às obras.
O poeta alemão Rainer Maria Rilke, com Cartas a um jovem poeta, foi o primeiro a ser citado:
– Nas cartas dedicadas ao jovem poeta, ali está tudo o que você pode aprender sobre inspiração, escrita e linguagem – afirma Trevisan.
A metamorfose, do também alemão Franz Kafka, foi considerada como “uma história incrível” e
A morte de Ivan Ilitch, do russo Liev Tolstói, “a melhor novela já feita”, na opinião do contista.Dentro da livraria, Trevisan elogiou outro contista:
– Leia tudo o que puder do russo Anton Tchecov. Aliás, existem boas coletâneas de suas obras.
No campo da poesia, o Vampiro indicou o pernambucano Manuel Bandeira, um dos seus prediletos:
– O estilo e a linguagem dele são maravilhosos. As crônicas também são boas. Leia Crônicas da província do Brasil e Os reis vagabundos.
E para o Vampiro, quem é o maior contista brasileiro?
– Machado de Assis. Além dos contos, leia Quincas Borba, Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro.
Depois de Machado, indagou-me se eu gostava de Rubem Braga. A última obra citada , classificada como “maravilhosa”, foi Madame Bovary, de Gustave Flaubert.
Em meio a tantos clássicos, o Vampiro seria capaz de reescrever as histórias melhor do que os próprios autores? A resposta é negativa:
– Ninguém pode reescrever A metamorfose melhor do que Kafka. Ninguém vai reescrever A morte de Ivan Ilitch melhor do que Tolstói.
Naquela manhã, ganhei dois presentes de Dalton Trevisan: duas edições pockets das obras citadas de Tolstói e Rilke. Outros livros, solicitados pelo contista, estavam fora do catálogo. Na frente do Vampiro, a atendente se comprometeu a conseguir os livros para eu buscá-los no dia seguinte. Ao encerrar o encontro, o contista estendeu a mão e abriu um sorriso. Semanas depois, entrei em contato com a livraria, passei meu endereço em Maringá e recebi, em minha casa, outras quatro edições de bolso enviadas pelo contista: Kafka, Tchecov, Machado e Dalton.
Jamais imaginaria que eu teria a chance de encontrá-lo novamente. Ele deve ter se irritado. A reportagem relatando nosso encontro foi publicada em um jornal do Paraná. Depois da publicação, enviei um outro livro para ele autografar, alguns contos de minha autoria e uma carta agradecendo pelas edições enviadas e também por sua produção literária. Todo o material foi reenviado para mim. No livro, nenhum autógrafo. Da mesma forma que foi, voltou. Era a primeira vez, em três décadas, que o contista concedia alguma declaração à imprensa.
Agora, quase um ano depois do primeiro encontro, eu me aproximo com três livros para serem assinados. Estamos em uma movimentada esquina. O sinal fecha.
– Dalton? – eu pergunto. Ele vira e me olha desconfiado. Peço um autógrafo nos três livros que retiro de dentro de uma sacola plástica.
Ao se deparar com uma rara primeira edição de Cemitério de elefantes, publicada em 1964, o contista reclama:
– Mas esta edição eu renego! Já reescrevi diversas vezes!
A curiosa cena protagonizada pelo autor, fanático por recompor suas obras em novas edições, extirpando uma ou outra conjunção, sempre reduzindo o tamanho dos contos, arranca uma risada minha. Peço que ele autografe mesmo assim. Dalton olha para trás, onde há uma pequena padaria, e indica o balcão:
– Vamos ali, para firmar os livros.
Na dedicatória, ele pede meu sobrenome, mas me recuso a dizer.
– Basta só Alexandre? – indaga o mestre da concisão e, diante da minha afirmativa, diz sorrindo:
– Então tá, só Alexandre.
Com o tempo, Trevisan padronizou seus autógrafos: “Ao (nome), cordialmente, D. Trevisan”. Agora, se há uma intimidade, o Vampiro muda: “Ao (nome), com um abraço do D. Trevisan”. E ele só rabisca a dedicatória em um dos livros. Nos seguintes, deixa apenas a assinatura. Na década de 60, quando iniciou sua trajetória literária, era diferente. Ele sempre era afetuoso na dedicatória e não assinava seu sobrenome, apenas Dalton.
Antes de encerrar o encontro, o contista indaga:
– Como você me achou aqui no Centro?
É claro que não digo que estou perseguindo-o há cerca de meia hora. Sem desviar o olhar, relembro um trecho de uma entrevista concedida nos anos 60, em que o próprio Trevisan contestava a fama de recluso. Cara a cara com o Vampiro, parafraseio sua declaração: “É possível encontrar Dalton Trevisan em cada esquina de Curitiba”. Ponto para mim. Arranco outro sorriso do autor, que observa:
– E você confirmou isso mesmo!.
Na padaria, ele estende a mão, compassadamente, e sorri:
– É sempre bom encontrar um leitor .
O escritor retoma a caminhada sem olhar para trás. Dalton Trevisan nunca olha para trás. Volto a segui-lo. Ele entra em um restaurante vegetariano. Sozinho. É muita ironia: um vampiro que se abstém de carne. Na volta para casa, meia hora depois, ele escolhe o mesmo trajeto e circula pelas mesmas praças, até enfrentar a íngreme rua que o leva à sua residência. Deixo o Alto da Glória com os livros assinados e algumas imagens do recluso contista. Curiosamente, não são as palavras do nosso encontro que ecoam na minha cabeça. Mas, sim, um excerto de sua nova obra, Violetas e pavões: “O senhor esconde o rosto desta cidade, mas não de mim”.
Alexandre Gaioto é jornalista freelancer e já colaborou com os jornais Diário do Norte do Paraná, Folha de Londrina, O Estado do Paraná, Gazeta do Povo e Zero Hora.
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2010/02/20/e20028216.asp

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A Manaus de Hatoum

Em "A cidade ilhada", livro de contos do amazonense Milton Hatoum, Manaus é o centro de suas tramas delicadas, poéticas e surpreendentes
É comum um escritor iniciar sua trajetória literária publicando contos. E, depois, com a experiência adquirida nas histórias curtas, partir para a composição de narrativas mais longas, dedicando-se à novela ou ao romance. Com o amazonense Milton Hatoum, autor do aclamado “Dois irmãos”, o trâmite foi diferente.
Seu primeiro livro publicado, o romance “Relato de um certo oriente” (1989), foi bem acolhido pela crítica especializada, venceu o prêmio Jabuti e, desde aquela época, já mostrava algumas características literárias que reapareceriam em suas obras, como o regionalismo, a prosa poética e o objetivo de imortalizar Manaus.
Depois de três Jabutis seguidos – além de “Relato de um certo oriente”, os romances “Dois irmãos” (2000) e “Cinzas do Norte” (2005) também foram contemplados com o prêmio –, o escritor apostou no diferente.
No ano passado, a Companhia das Letras lançou “A cidade ilhada”, volume reunindo alguns de seus contos publicados em jornais e revistas, no período de 1990 e 2008, além das histórias inéditas. Tanto na novela “Órfãos do Eldorado”, publicada há dois anos, quanto nos contos, Milton Hatoum revela-se um autor saboroso em suas concisões. Seu ritmo de narrativa delicado conduz, sempre com belas imagens, as 14 histórias de “A cidade ilhada”.
No primeiro conto, Hatoum regressa à Manaus de sua infância para compor, com pureza e inocência, sobre a primeira noite de um grupo de jovens amigos no prostíbulo “Varandas da Eva”. Tal como o grupo de amigos que vai ao balneário das mulheres, praticamente todos os personagens do livro estão em Manaus.
Em “Dois poetas da província”, Hatoum resgata a passagem do filósofo Jean-Paul Sarte por Manaus; “Um oriental na vastidão” mostra a bonita história de um cientista japonês que viaja à Manaus apenas para conhecer as águas do rio Negro – local onde, futuramente, ele escolherá para morrer; um jornalista indiano, disfarçado de almirante, faz uma visita a um escritor de Manaus – Milton Hatoum? – a fim de publicar, na Índia, um perfil sobre autor.
Na cidade de Hatoum, os homens defendem sua honra com vingança e cabeça em pé. Nos contos “O adeus do comandante” e “A casa ilhada”, o escritor traça dois perfis completamente diferentes para dois homens traídos por suas respectivas mulheres. No primeiro, um simples barqueiro, numa lúgubre viagem de barco, assassina o próprio irmão após descobrir os casos de infidelidade envolvendo sua esposa: “Salvei minhas honras e tirei a vergonha dos meus três filhos”, explica o personagem. Já em “A casa ilhada”, um renomado biólogo retorna à Manaus para matar o homem que seduziu sua mulher e arruinou o início do seu casamento. Assim, o contista une, no mesmo nível, o intelectual ao homem simples: ambos traídos à beira do rio Amazonas.
Tal como Dalton Trevisan mitificou Curitiba e João Ubaldo Ribeiro, a ilha de Itaparica, o escritor amazonense se dedica às peripécias de sua região, com os seus costumes, tradições, gírias, pratos típicos e lendas: é o comportamento subversivo do jovem artista Mundo, do romance “Cinzas do Norte”; são as brigas constantes dos gêmeos Yaqub e Omar, em “Dois Irmãos”; é o retrato da decadência na vida de Arminto Cordovil, em “Órfãos do Eldorado”.
As delicadas histórias de Milton Hatoum, em “A cidade ilhada”, poderiam acontecer em qualquer lugar do mundo. Mas o contista não abre mão de sua terra. É em Manaus - ou numa pequena cidade à beira do rio Amazonas – que suas tramas são ambientadas e desenvolvidas.
Milton Hatoum segue o conselho do autor russo Leon Tolstoi: “Cante a tua aldeia e serás imortal”.
Publicada em O Diário do Norte do Paraná (27/01/10).

Na estrada do terror, com Cormac McCarthy

Nas tradicionais listinhas de fim de ano, o jornal britânico “The Times” resolveu elencar os cem melhores livros da década. Nada muito fora do comum: Phillip Roth, Ian McEwan, Salman Rushdie e J. M. Coetzee. Estranho foi contemplar, na terceira posição, o best-seller “O Código da Vinci”, de Dan Brown. Irônico é que o mesmo livro foi vencedor em outra categoria: os cinco piores livros da década.
No primeiro lugar, o “The Times” fez justiça apontando “A Estrada”, do norte-americano Cormac McCarthy. Frequentemente comparado a Herman Melville e William Faulkner, McCarthy escreveu uma dezena de romances, entre eles “Onde os velhos não têm vez” (2005), “Todos os belos cavalos” (1992) e “Meridiano sangrento” (1985) – considerado um dos melhores romances do século 20, na opinião do crítico literário Harold Bloom.
Publicado em 2006, vencedor do Prêmio Pulitzer de 2007, “A estrada” é aterrorizante. Não é possível saber em que ano, exatamente, a história se passa. Algumas pequenas marcas de tempo, como uma garrafa de Coca-Cola, indicam que a história não está situada em um passado longínquo. É uma América pós-apocalíptica, em que já não resta quase nada no mundo. Todas as casas e prédios estão abandonados, destruídos. Os supermercados foram saqueados e os poucos vivos que circulam, costumam se alimentar de seres humanos, andando em bandos à procura de carne fresca.
O livro, narrado em terceira pessoa, traz basicamente dois personagens, o pai e seu jovem filho – eles não têm nomes. Cormac McCarthy abriu mão de nomeá-los, para que a situação vivida pela dupla seja ainda mais universal. Devido ao intenso frio em que estão vivendo, resolvem seguir a estrada, rumo ao sul, a pé, em busca de uma chance de sobrevivência.
O que vão encontrar por lá? Gangues, assassinos ou pessoas que, assim como eles, são do bem? Eles não sabem. A dupla carrega um carrinho de compras e duas mochilas com alguns produtos essenciais para garantir, temporariamente, suas vidas. Nas mãos do pai, um revólver com apenas duas balas: uma possível solução para o drama da dupla.
Como a proposta do autor é narrar, em 234 páginas, os meses do percurso dos personagens, McCarthy optou por separar a narrativa em pequenos e médios blocos de texto. Assim, o narrador coordena os momentos em que o tempo avança ou permanece estagnado na história.
Em cada momento em que a dupla identifica uma casa – ou o que sobrou dela –, o clima de suspense desperta. Não é possível continuar seguindo o caminho, sem antes tentar encontrar na residência algo para comer ou algum objeto que possa servir para alguma finalidade. Se a casa ainda estará habitada ou não, é um risco que eles correm.
No primeiro encontro com outro personagem, um integrante de uma gangue canibal, a vida do garoto é posta em risco e o pai faz um disparo contra o inimigo. Resta, então, a partir daí, apenas uma bala para aliviar o sofrimento dos dois, um sofrimento que ainda não chegou no limite.
O desejo pela morte é levado ao extremo em apenas uma cena. Num dos momentos em que vasculham uma casa, pai e filho descobrem uma horripilante prisão de humanos. No mesmo instante, os responsáveis pela casa chegam e os dois fogem sem conseguir salvar os encarcerados. Enquanto permanecem escondidos, o pai pede ao filho que, se forem capturados, ele seja capaz de cometer o suicídio, utilizando a única bala que resta na arma.
“Você consegue fazer isto? Quando o momento chegar? Quando o momento chegar não vai haver tempo. O momento é agora. Amaldiçoe Deus e morra. E se não disparar? Você poderia esmagar esse crânio adorado com uma pedra? Há um ser dentro de você sobre o qual você não sabe nada? Será possível? Segure-o nos braços. Assim mesmo. A alma é rápida. Puxe-o na sua direção. Beije-o. Rápido.”
Na estrada de McCarthy, mesmo caminhando no clima de suspense, suportando um frio de congelar a espinha do leitor, os dois personagens conseguem construir uma relação de amor e amizade entre si: é Isso o que faz de “A Estrada”, uma obra-prima.
Para ler:
“A Estrada”, de Cormac McCarthy (Alfaguara, 234 págs, 36,90).
Tradução de Adriana Lisboa.
Avaliação: Excelente.

Da roça para o Big Brother

Filho de agricultor e cabeleireira, o engenheiro agrônomo maringaense, Eliéser Ambrósio, 25, é o galã da nova edição do programa
Quando Eliéser Ambrósio decidiu se aventurar no universo da moda, em 2003, teve de ir contra o seu próprio pai: “Não apoiei a ideia dele porque eu tinha preconceito com esse meio, por ter muito homossexuais”, revela o agricultor Valdir Ambrósio, 50.
Na época, Eliéser ainda cursava o curso de Agronomia, na Universidade Estadual de Maringá. Se dependesse da vontade paterna, o modelo também seria agricultor: “Sempre quis que ele seguisse meu caminho, que ficasse na roça comigo”, conta o pai. A confiança no seu próprio potencial revela um pouco da personalidade do participante da edição do Big Brother Brasil 10.
O primeiro convite para desfilar surgiu por acaso. Eliéser malhava, tranquilamente, em uma academia, quando foi abordado por um dos organizadores do concurso Miss e Mister Maringá. O resultado? Foi contemplado com o segundo lugar, mesmo sem dominar os macetes da passarela. Daí em diante, conciliou o curso de Agronomia com a vida de modelo fotográfico e foi eleito Mister Goioerê e Mister Ecologia do Paraná.
Eliéser Ambrósio nasceu em Maringá, mas, logo nos seus primeiros dias de vida, foi levado à cidade de São João do Ivaí, onde viveu até os 14 anos. Com essa idade, o garoto que sonhava em ser médico conseguiu uma bolsa de estudos, em um colégio em Maringá, graças ao seu talento como jogador de vôlei.
No colégio, ele não passou em branco. A maringaense Thais Pimenta, 21, lembra que, ainda jovem, o modelo já despertava paixões e euforia nas estudantes. Ela recorda que, em 2004, formou um par com Eliéser, durante uma dança numa festa de debutante: “Causei inveja nas minhas amigas porque todas morriam de paixão por ele”. Thais acredita que “todos vão gostar dele no programa”, e elogia o colega, relembrando a noite: “ele era um bom dançarino”.
Perguntar por Eliéser a amigos, colegas e parentes, é esbarrar na mesma característica: bom humor. Juliana Mendes, 19, diz que o amigo sempre consegue provocar o riso das pessoas que estão à sua volta: “Ele é muito simpático, carismático, engraçado, faz amizade com as pessoas em todos os lugares em que está”. Ela conta que Eliéser também faz imitações do personagem de desenho animado, Bob Esponja, e do ex-apresentador Clodovil Hernandes.
O primo de segundo grau, Victor Hugo Ambrósio, 24, lembra uma das peças pregadas por Eliéser, ao ser aprovado no vestibular para Agronomia, em Maringá: “Ele escreveu ‘medicina’ na testa e saiu na rua para pedir dinheiro com o pessoal. No dia seguinte, o jornal da cidade mostrou a foto dele bem na capa. Todos os parentes e amigos ligaram, dando os parabéns para os pais e até para a avó dele!”, lembra, em meio a risadas.
E a série de histórias engraçadas continua. No meio da festa de sua formatura, Eliéser interrompeu a apresentação da banda e pediu para dar uma notícia séria. Quando todos ficaram em silêncio, o modelo disparou: “meu pai tem bigode!”. Na mesma noite, quando entrava no salão acompanhado de sua mãe, surpreendeu a todos ao deitar no chão e iniciar uma sessão de flexões.
Publicada na Folha de Londrina (12/01/10).

Na onda do Charme Chulo

Quarteto curitibano que mistura rock com música caipira se apresenta hoje, em Maringá

Prepare o chapéu de palha, a calça jeans, arrume uma camisa xadrez e calce um confortável par de botas: O Charme Chulo está de volta a Maringá. Considerado um dos grandes nomes do rock independente brasileiro, o grupo lança hoje à noite, no MPB Bar, seu segundo álbum de músicas inéditas. Intitulado “Nova onda caipira”, o disco é uma mistura de rock com música caipira, e consegue superar o primeiro CD, “Charme Chulo” (2007), responsável por projetar o nome do quarteto no cenário musical.
Como em toda banda que enfrenta a gravação do segundo álbum, o Charme Chulo também viveu o medo de não fazer algo à altura do trabalho inicial: “Foi um grande desafio porque a gente teve menos tempo para conceber o disco, diferentemente do CD de estreia, que foi uma coletânea da nossa vida até aquele momento”, observa o vocalista e compositor Igor Filus.
Nas 11 faixas do “Nova onda caipira”, que é distribuído pelo selo Volume 1, o quarteto surpreende. Além do amadurecimento musical, a banda cresceu também nas composições das letras. Em “Moda do Acerto”, uma divertida moda de viola, a violência urbana é retratada com boas doses de humor. A classe política, pela primeira vez, é ironizada nos versos da canção “Brasil sacanagem”. Tudo, é claro, com melodias originais e riffs dançantes, como na excelente “Fala comigo, Barnabé!”.
Explorando o regionalismo como temática, Igor Filus revela sua paixão por Maringá, cidade onde nasceu, homenageando o lendário time de futebol maringaense da década de sessenta, com a balada “Galo Maringá”.
O grupo não é o único a explorar o hibridismo entre a música caipira e a influência do rock oitentista. O som produzido pelas bandas Supercordas (SP), Matuto Moderno (SP), Os Pamonheiros (SP) e Bico do Corvo (MG), faz com que o vocalista do Charme Chulo vislumbre “um movimento novo” no rock nacional: “Há uma onda de bandas que usam violão e sons mais acústicos, com influências da música caipira e que estão no underground”, ressalta.
Além de tudo, a apresentação da banda é uma grande diversão, com direito a dancinhas desengonçadas de Igor Filus e covers dos ídolos Tonico e Tinoco – eles costumam executar “Moreninha Linda”, um dos sucessos consagrados da dupla.
Serviço:
Quando – Hoje, 22h.Onde – MPB Bar, Av. Curitiba, 210, Zona 4, em Maringá. Quanto – R$ 15 ou R$ 10 (antecipado) na Livraria Espaço, no shopping Maringá Park.
Publicada na Folha de Londrina (04/12/09).

O amor e as mortes de Rubem Fonseca

Em “O Seminarista”, escritor mineiro homenageia sua atual namorada e envolve o leitor em uma trama inteligente e cheia de assassinatos
Papai Noel é o primeiro a morrer com uma bala na cabeça. Em uma cena antológica, José Rubem Fonseca inicia “O Seminarista”, seu novo romance policial, escrevendo sobre o assassinato de um sujeito fantasiado de Bom Velhinho, em plena véspera do Natal.
Em “O Seminarista”, Rubem Fonseca cria o José, um matador de aluguel conhecido como O Especialista, que recebe de um personagem chamado Despachante as ordens para realizar uma série de assassinatos. Assim, O Especialista conta, concisamente, alguns de seus “trabalhos específicos” que, além do Papai Noel, incluem um pedófilo, um assassino profissional e um necrófilo.
Depois de assaltar o pedófilo e matá-lo, no segundo assassinato do livro, a figura de José começa a ganhar contornos de um anti-heroi. O protagonista concede uma carona ao garoto que estava no apartamento do pedófilo, leva-o até sua casa, na favela, dá o dinheiro roubado do pedófilo à mãe do garoto e a ameaça: “Se você não tomar conta direito dos seus filhos eu te arrebento, entendeu? E se for viver com um gigolô que vai roubar a sua grana eu mato vocês dois”. É mais um inesquecível personagem fonsequiano.
O assassino abandona o emprego aos 40 anos de idade e revela ter a “consciência pesada”, devido aos crimes que cometeu em sua trajetória. Mas a sua rotina de aposentado muda com a presença de Kirsten, uma jovem alemã que traduz livros do português para o alemão. Na vida real, Rubem Fonseca, a exemplo de José, O Especialista, também namora uma jovem alemã que traduz livros da língua portuguesa para o alemão. Dessa forma, o escritor homenageia e imortaliza sua atual namorada em uma obra que, provavelmente, ela mesma traduzirá para a edição alemã.
Após o início do romance – no livro – de José com Kirsten, o protagonista descobre que ela é filha do Despachante e que, inicialmente, cumpria a tarefa de espioná-lo. Descobre, também, ser alvo de perseguição, devido ao desaparecimento de um CD, contendo informações sigilosas e comprometedoras que estava na casa de uma de suas vítimas.
Nesse ponto da obra, Despachante, Kirsten e José passam a investigar o destino do objeto, enquanto a morte se aproxima do trio a passos céleres. Tudo, é claro, conduzido por um enredo inteligente e misterioso.
Na intensidade do amor e da violência, o escritor insere, na fala de O Especialista, algumas citações bíblicas e excertos poéticos em latim e em outras línguas, de autores como Cícero, Horácio, Sêneca, Camões, Propércio, Petrarca, Salústio, entre outros.
A poesia e os fragmentos de pensamentos pipocavam na cabeça do matador de aluguel desde o tempo em que ele frequentou o seminário e abandonou a vida dedicada à igreja, “por ser um sujeito libidinoso”. A presença das citações é tão frequente, que até mesmo um dos personagens critica o costume de José: “Essa tua mania de falar latim enche o saco”.
O uso de citações é uma estratégia necessária de Rubem Fonseca para mergulhar o leitor na complexidade psicológica do assassino de aluguel. Afinal, a violência, na obra fonsequiana, nunca é gratuita.
Aos 84 anos, Rubem Fonseca continua a provocar seus leitores com doses cavalares de sarcasmo, inteligência, erudição e, além de tudo, uma boa história: receita que o consagrou como O Especialista do romance policial na literatura brasileira.
Título: “O Seminarista”
Autor: Rubem Fonseca
Editora: Agir
Preço: R$ 36,00 (181 págs.)
Avaliação: Excelente
Publicado em O Diário do Norte do Paraná (25/11/09).

Mutarelli solta os demônios

Não espere apenas por um romance ou uma novela. “Miguel e os Demônios”, o novo livro do cartunista e escritor Lourenço Mutarelli, possui influências tão fortes dos filmes e dos quadrinhos, que a obra é, ao mesmo tempo, gibi, roteiro cinematográfico e, claro, literatura.
A linguagem concisa de Mutarelli serve para retratar a psique de seus personagens, que vivem rotinas patéticas, sufocantes e, devido ao caos diário, não conseguem refletir sobre o estado depressivo em que estão envolvidos. A escrita rápida, instantânea e automática do autor caracteriza a trajetória de seus personagens.
O protagonista Miguel, um investigador da polícia civil, permanece consternado em meio ao envolvimento amoroso com sua esposa, um relacionamento sem diálogos nem sentimentos. Sua única diversão consiste em jogar paciência no computador do trabalho.
A vida do protagonista muda quando ele flagra seu chefe, no motel com uma amante, e é pressionado a mudar de repartição. Dias depois, ao atender o chamado de uma mulher que encontrou uma múmia em sua residência, Miguel a reconhece como sendo a amante, uma prostituta com quem ele passa a manter alguns encontros.
Miguel, então, cai em desgraça. Ele fica viciado no sexo com a prostituta; seu pai sofre um derrame cerebral; e resolve separar-se da esposa, que deixa, de propósito, o gás do fogão aberto para causar sua própria morte e as mortes de sua irmã e suas duas filhas.A culpa da série de acontecimentos é o envolvimento de Miguel com a prostituta, que estaria ligada a seitas satânicas. Dominado, finalmente, pelos demônios que o atormentavam desde o início da obra, Miguel se vinga do cunhado, que fotografava suas próprias filhas, em poses sensuais, e vendia o material na internet.
O enredo, por si só, é bizarro. Descritas pelo autor, as cenas do livro ganham contornos grotescos, irônicos, repugnantes. Em certos momentos, Mutarelli descreve seus personagens por meio de closes de câmeras, indicando, na obra, o momento em que a câmera sobe ou desce. Ou seja, em Mutarelli, a literatura imita a produção cinematográfica.
É preciso ler “Miguel e os Demônios”, reconhecendo o humor peculiar do autor. Em O Cheiro do Ralo (2002), o protagonista conclui que os personagens do seriado “Friends” são seus melhores amigos. Em “A Arte de Produzir Efeito sem Causa” (2008), o personagem principal separa mentalmente as mulheres que encontra à sua frente, toda vez que sai às ruas, em três seções: as mulheres que ele “comia”, “casava” ou “mandava pra forca”. Já em “Miguel e os Demônios”, o chefe de Miguel decepa os dois dedões e o próprio sexo com uma tesoura, e a prostituta com a qual o protagonista se envolve, revela-se ao leitor, abruptamente, como sendo, na verdade, um travesti.
A literatura brasileira não é mais aquela da década de 1930, em que havia uma união temática entre os autores, como Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Os sujeitos pós-modernos, pós-industriais, são projetados na obra de Mutarelli, em situações anormais, viciantes, em que não há vida além da rotina de trabalho. A repetição de ações e a loucura unem o cômico ao macabro em Miguel e os Demônios, um livro mordazmente engraçado, tradutor do Brasil contemporâneo.
Título: Miguel e os Demônios
Autor: Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 34,00 (115 págs.)
Avaliação: Ótimo
Publicada em O Diário do Norte do Paraná (25/10/09).

Um conselho de Roth

“Os sentimentos podem ser o maior problema na vida. Os sentimentos podem nos pregar peças terríveis”, alerta Philip Roth. Nestas duas frases, o maior escritor vivo da língua inglesa expõe o cerne de seu novo romance, “Indignação”.
Em seu vigésimo nono livro, Roth retoma a influência da sociedade judaica, a tensão sexual de seus personagens e o excesso de proteção familiar que os envolvem. A novidade, desta vez, está no rompimento com os narradores velhos de seus últimos livros, “O Fantasma Sai de Cena” (2008) e “Homem Comum” (2007).
Narrado em primeira pessoa pelo jovem Marcus Messner, um estudante de direito que está sob efeito de morfina, “Indignação” é um romance primoroso, permeado por diálogos cortantes e conduzido por minuciosos detalhes que constituem, a cada página, o emaranhado psicológico dos personagens de Roth.
No momento em que o protagonista inicia sua vida acadêmica, seu pai passa a temer sua morte de uma forma paranoica, doentia, ainda mais acentuada do que em “O Complexo de Portnoy” (1969), obra que assegurou o lugar de Roth na literatura contemporânea.
Seja com relação aos seus familiares, aos colegas de quarto, à religião e até mesmo na relação sexual com uma colega, o narrador sente-se constantemente indignado, mas sempre escolhe evitar os problemas. A calma de Marcus Messner, no entanto, tem limites. E é discutindo com o diretor de alunos da universidade que o protagonista dá voz aos seus sentimentos e ofende verbalmente o diretor, o que resulta na sua expulsão.
Convocado para ingressar o exército estadunidense na guerra da Coreia, Messner morre atrofiado pelas baionetas inimigas, em um ambiente tão sangrento quanto ao açougue em que trabalhou durante a adolescência.
Por meio de personagens perturbados, que vivem as diferenças existentes entre a cultura judaica e a cultura norte-americana, Philip Roth, aos 76 anos, produz outro retrato provocante dos sentimentos humanos. E revela ao leitor que, às vezes, o melhor é cumprir as obrigações da mesma forma passiva e tolerante tal como Messner, trabalhando no açougue de seu pai, aceitava a tarefa de eviscerar galinhas: “Nauseabunda e repugnante, mas tinha de ser feita.”
Que a vida fosse boa e justa para Messner e para todos nós, mas ela é repleta de injustiças, desaforos, indignação. Evitar os confrontos e aceitar passivamente algumas ordens pode ser a melhor estratégia, de acordo com o conselho de Philip Roth.
Publicada em O Diário do Norte do Paraná (04/10/09).

O grande sertão de Elomar

Em entrevista exclusiva ao Cultura, o recluso compositor baiano Elomar Figueira Mello avalia sua trajetória artística, faz críticas aos Estados Unidos, à democracia e às massas, ataca a televisão e diz que não grava mais discos
Desde que surgiu no cenário da música brasileira, com ...Das Barrancas do Rio Gavião (1972), cantando em uma linguagem dialetal “sertaneza”, Elomar Figueira Mello já apresentava sua proposta de versar sobre o sertão profundo, retomando o universo medieval. Dialogando com a música popular e a música erudita, o cantor e compositor gravou um total de 15 discos, entre 1972 e 1995, compondo óperas, concertos e canções.
Aos 71 anos, o “príncipe da caatinga”, como definiu o poeta Vinícius de Moraes, raramente concede entrevistas, não permite ser fotografado durante seus concertos e realiza poucas apresentações. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Elomar abandonou a capital assim que concluiu o curso, e retornou ao local onde nasceu, o campo, para criar carneiros, ovelhas e bodes. Na fazenda, que recebeu o nome de Casa dos Carneiros, 20 km de Vitória da Conquista, no interior da Bahia, Elomar compôs praticamente todas as suas obras. E recusou-se a compor contra a ditadura.
Em 2007, realizou algumas apresentações pelo Brasil para lançar Sertanílias, seu primeiro romance, publicado de forma independente. No mesmo ano, viajou a Portugal, onde fez uma pequena série de concertos. Em 2008, cancelou o lançamento do que seria o seu primeiro DVD, resultado de um concerto gravado em 2007, que reuniu uma orquestra, contou com a participação dos músicos Xangai, Saulo Laranjeira e Dércio Marques, e reuniu cerca de 2 mil pessoas na Casa dos Carneiros, oficializando a fundação cultural que hoje existe na fazenda.
Após três horas e meia aguardando a chegada de Elomar, no escritório que administra sua carreira, em Vitória da Conquista, o compositor entra visivelmente transtornado, vestindo uma camiseta com o seu desenho e, na cabeça, o inseparável chapéu de couro.
Na recepção, foi possível ouvir a discussão furiosa do compositor com sua produtora. O motivo? Um vídeo postado por um admirador, no site Youtube, que mostra Elomar tocando Campo Branco, em clima intimista, acompanhado por dois músicos.
Antes de chegarmos à Casa dos Carneiros, no Povoado da Gameleira, paramos na casa de um marceneiro, amigo de Elomar. Conversando com ele, Elomar escuta do amigo que a saúde não vai bem e que o “check up” realizado recentemente exige-lhe novos exames.
– Que o quê? – indaga Elomar.
– Check up – repete o marceneiro.
Dentro de sua camionete, o compositor ironiza a situação:
– A língua inglesa invadiu até a caatinga.
Você viveu e adquiriu conhecimentos no campo e na cidade. Você se considera um sujeito híbrido?
Não, eu não sou híbrido. Sou mais um analista, um observador urbi et campi, um observador da cidade e do campo. Eu me vejo como um historiador, um cronista dessas culturas contraponentes e paradoxais: a sociedade roçariana versus a sociedade urbanoides. Desde muito cedo, descobri que a vida urbana, o processo, o desenvolvimento urbano e técnico, a mentalidade tecnicista do século 20, é prejudicial. A cidade é a tenda de urdir o mal, as coisas ruins, o lixo espiritual ético, moral e físico.
Quem é o seu público?
Meu público vai de um catedrático de História, de Antropologia, de Letras, da USP, da Federal da Bahia, da Federal do Rio de Janeiro, a um simples mecânico da linha Rio-Bahia, com as unhas atoladas de graxa, a um simples vaqueiro do campo, um pequeno barqueiro da feira de Vitória da Conquista. Meu público, ou é o peãozinho lascado de baixo, que é atraído pela temática e pela linguagem dialetal, ou é um intelectual. Fica nessa faixa, cortando o elemento do miolo. O meio do corpo, aquele público mediano, não é público meu. Esse meião é o público do produto dos meios de comunicação. Não precisa citar nome, você já sabe quem são eles. Esses, que têm nome no Brasil inteiro. O meio campo intelectual não gosta de Elomar. Em outras palavras, não é eleito, porque o meu público é formado por gente eleita.
A massa não é o seu público?
A massa, para você, é o que eu chamo de canalha? A canalha jamais terá acesso à minha obra. A massa não tem parte com a minha obra, mesmo porque a massa não gosta da minha obra. Eu não gosto da massa. Apenas, tenho compaixão da massa. Tenho pena e dó da massa, que é o meu dever de cristão, pela brutalidade dela.
É possível encontrar a identidade do povo sertanejo em sua obra?
A proposição minha é cantar a cultura de um povo que se identificara. Por intermédio das minhas lembranças, das minhas vocações, daquele passado bonito, glorioso, em que existia aquela nação “sertaneza”, comungando os mesmos valores. Mas hoje, infelizmente, não é mais possível. Eu ainda insisto na mesma máxima, na mesma jornada, porque quando comecei a cantar essa identidade, a cantar os valores culturais desse povo, existia identidade cultural. Hoje, essa identidade já foi destruída pela proposta moderna ou pós-moderna, por intermédio dos meios de comunicação, da vontade política via meios de comunicação, porque esses valores deveriam ser dissipados.
É o que aconteceu com o seu amigo marceneiro, que durante a nossa conversa usou o termo “check up”?
Ele disse aquilo de uma maneira repetitiva, porque ouviu falar. Mas propor aquilo, não é da natureza íntima dele. Ele não tem o perfil desse entreguismo cultural.
Em Curvas do Rio (1978), você canta: “Sou imbuzêro das bêra do rio”. O que isso significa para você?
É a questão da grande baladinagem, é a questão da grande resistência. Sou “imbuzêro das bêra do rio”, é aquele imbuzêro que está dando fruto todo o ano, o rio com todas as enchentes não o levou. Ele tem raízes profundas, fincadas no seio do solo, da terra. Eu estou na beira do rio, o rio vem, com a sua enchente, me cobre de água, pensa que me matou, mas não me leva e nem me mata.
É uma resistência?
É uma resistência a tudo aquilo que nos agride. É resistência a toda onda, vento, viração, monção, tremor de terra, enchente, a toda turbulência de água que quer nos arrancar do solo, que quer tirar os nossos valores. É a resistência. Eu sou eu, e alguém quer que eu não seja mais eu. Eu resisto em ser eu: não quero ser você. Eu quero ter as minhas coisas, não me tire aquilo que é meu. Eu não quero ter a pátria de ninguém: eu quero ter a minha pátria. Eu não quero conhecer as praias de ninguém: quero estar na minha praia. Eu não quero a comida de ninguém: quero comer o meu pequeno repasto.
Você não quer a língua de ninguém?
Não aceito a língua de ninguém. Basta-me o meu vernáculo, rico, belo e culto da língua portuguesa. Aldo Rebelo (PCdoB-SP), amigo meu, tem uma tese bela, Culta, Bela e Ultrajada, que trata da invasão da língua inglesa no Brasil. Ele fez esse projeto de Lei, em defesa da língua, mas Brasília não aceitou. O Brasil tem essa babaquice, desses intelectualoides, desse abricionismo, de ser aberto às outras culturas. As culturas têm de ser fechadas. Aquilo que for conveniente para ser absorvido, que seja. Agora, afrouxar-se, porque a cultura de fora é de rico, é de uma moeda forte, isso é coisa de sub-raça, gente que não tem miolo, não tem envergadura, que não constitui raça
Por que não dar entrevistas?
Eu fui de 1968 até 1998 dando entrevista para televisão, jornais, Pasquins, grandes rádios, rádio fuxico, que, de tão fraquinha, na periferia ninguém nem pegava. Foi entrevista para todo canto, falei o que tinha para falar. Chegou um tempo em que esgotou. E por outro lado, a entrevista cessou pelo problema com a questão da imagem. A vinda da imagem televisiva, não sei se é assim que se diz, eu também não me interesso em aprender essa linguagem, veio para causar danos, sobretudo, à nossa língua portuguesa. A imprensa televista é tremendamente irresponsável. Qualquer mocinha dessas, de bundinha arrebitada, loirinha, bonitinha, perninha roliça, acham-na, os senhores donos do sistema, diplomada o bastante para poder dirigir um programa de televisão para crianças ou adultos. E quando abre a boca, é só para dar coice, e todo mundo engole aquilo, a ponto de chegar a uma nação como essa. Esses caras só querem imagem, não querem notícia nenhuma.
Você não aceita que vídeos com a sua imagem sejam postados no Youtube?
Eu nunca me interessei pela divulgação da minha obra, nunca tive a intenção de levá-la a público nenhum. Minha obra é limpa, pura, bonita, brasileira, autóctone, de um poeta puro. Ela tem de se impor por seu valor próprio.
Seu último disco é de 1995. Por que você não grava um disco novo?
Eu nunca quis gravar discos na minha vida. A música, quando vai para o disco, ela morre. Eu sempre achei que as pessoas deveriam se reunir e mostrar sua arte, sua canção, como era nos tempos antigos, em saraus, encontros. Não precisa disco nem nada. Mas gravei o primeiro disco e, depois, virou um horror, um clamor, um petitorium por parte de um pequenino público. Agora, chegou essa quadra, esse tempo raivoso, do mar do Caribe, o mar dos piratas. A pirataria no mundo é um horror. Então, eu encerrei, não gravo mais disco.
O DVD não será lançado?
Não vai mais sair porque ele alcançou uma velhice precoce. Perdeu o sentido.
Por que você nunca compôs contra a ditadura?
Eu atravessei toda a ditadura militar, compondo e assistindo ao protesto de todos os cantos, não só do Brasil, mas em todo o continente latino-americano. Respeito o protesto dos outros, não aceitei a ditadura, mas nunca senti vontade de protestar, porque eu não tinha contra o quê protestar. A democracia é uma das maiores mentiras que os gregos inventaram. Governo do povo? Isso não existe. Olha que paradoxo: quem é que o povo vai governar? Povo é um conjunto, é multiplicidade de indivíduos. O povo vai governar uma pessoa, ou o povo é que tem de ser governado? Um povo tem de ser governado por alguém. Não estou querendo dizer que nós devemos ser governados pelos militares. Deus que me livre! Mas a democracia também não resolve. O que está acontecendo hoje no Brasil é uma tremenda ditadura velada. Há um silêncio lascado de intelectuais, de todo um pessoal que protestava, que tinha de acabar com a ditadura, que o Brasil precisava de democracia. O meu governo preferido, Ariano Suassuna está comigo, é a Teocracia, regime que os hebreus tiveram por longo tempo: Deus como presidente da República, por intermédio de seus interlocutores, os profetas.
Hoje, você é tema de diversos trabalhos, teses acadêmicas. O que acha?
É importante demais, porque cada tese, cada ensaio, cada monografia sobre o meu trabalho, minha canção, minha música, é bom para o Brasil, para o meu povo. Esse povo que vira a cara, o tempo todo babando, boca aberta, olhando para os Estados Unidos, para a cultura americana, que não tem cultura nenhuma. À medida que o meu trabalho for estudado, o povo tem condição de ter notícia desse trabalho, de se voltar para ele e descobrir, aprender a respeitar seus tesouros, seus valores, suas coisinhas.
Em produções acadêmicas, você é comparado a Guimarães Rosa. Tem até uma comparação com o Alberto Caeiro.
Eu não sabia do Caeiro, é sério isso? Eu já vi algumas citações de doutores da área de Letras, fazendo analogias da minha poética com Castro Alves. É uma honra imensa. Poxa, Castro Alves é o maior cantor do continente americano! Agora, com Guimarães, eles sempre fazem. Certa vez, li um ensaio tão bonito, falando sobre mim e sobre Guimarães, mostrando a grandeza das almas minha e dele, da dignificação que nós dispensávamos à cultura pastoril, ao vaqueiro, ao tanger do gado, dos bois dos rebanhos, aos cães e gato, às travessias do rio cheio. Aonde é que me botaram, né?
Publicada no Zero Hora (22/08/09).

Maringá vive o mês do rock

A proposta de levar o rock independente a um novo público é ousada. O produtor cultural Flávio Silva, um dos organizadores do Junho do Rock, que está acontecendo este mês em Maringá, diz que a ideia do festival é desmistificar o conceito que as pessoas possuem sobre este gênero musical: “O pessoal liga o rock ao som do metaleiro, e rock não é só isso. Tem bandas de vários estilos. O rock sempre costuma estar ligado a músicos drogados, bêbados, mas esse tipo de gente pode aparecer em qualquer banda. A gente quer mostrar que rock é coisa de gente normal”, afirma.
O festival segue com pocket show grátis na universidade estadual, nas faculdades Maringá e Unifamma, e também na praça de alimentação do Shopping Maringá Park.
Ontem à noite, foi a vez do Vanguart explorar novos palcos na cidade. O grupo que emplacou o hit “Semáforo” e está lançando o CD “Multishow registro Vanguart”, levou suas guitarras distorcidas e boas doses de melancolia para o teatro Calil Haddad.
Realizar os shows em lugares como o MPB Bar é uma estratégia de Flávio Silva para ampliar e fortalecer o cenário do rock independente de Maringá. Afinal, atualmente existem apenas dois bares, Tribos e Pub Fiction, que recebem bandas interessadas em executar músicas próprias.
“O Tribos e o Pub Fiction precisam de uma estrutura melhor para o público e para a banda. Faltam um camarim para os músicos, além de iluminação de qualidade e som. Eu quero abrir novos espaços com o festival”, diz Silva.
O produtor musical e polêmico jurado do programa Astros, do SBT, Carlos Eduardo Miranda, faz uma palestra sobre a produção musical independente, no dia 26, às 16 horas, no Shopping Maringá Park. A palestra também vai contar com a participação de jornalistas e músicos.
Além de Miranda, os destaques do Junho do Rock são as bandas Nervoso e os Calmantes (RJ) e a paranaense Charme Chulo, que, além de um pocket show no shopping, no dia 25, encerra a programação do festival, no dia 26, com uma apresentação no MPB bar.
Próximos shows:
Nevilton – pocket show no dia 18, às 22h, na Universidade Estadual de Maringá. Entrada grátis.
Nervoso e os Calmantes – Show no dia 20, às 23h, no Tribos Bar. Os ingressos custam R$ 10,00 e podem ser adquiridos na livraria Espaço do Livro, no Shopping Maringá Park.
Charme Chulo – Shows dia 25, às 18h, no Shopping Maringá Park e dia 26, às 23h, no MPB Bar.
Publicada na Folha de Londrina (12/06/09).

"A vida é assim: a vida é pouca"

Em entrevista à FOLHA, o poeta maranhense Ferreira Gullar reflete sobre sua produção literária e revela que o poema nasce da surpresa

Quando José Ribamar Ferreira compôs “A Luta Corporal”, livro que ele considera como a sua estreia na literatura, não faltaram críticos para apedrejar a obra e o autor: “Eu fui chamado de vigarista e de maluco!”, recorda o poeta, em meio a boas gargalhadas.
Considerado por Vinícius de Moraes como “o último grande poeta brasileiro”, Ferreira Gullar, que não lança um livro de poemas inéditos desde 1999, está prestes a saciar a curiosidade dos seus leitores, com a publicação de “Em Alguma Parte Alguma”. Em 2010, quando o poeta e crítico de artes completará oitenta anos de idade, a editora José Olympio pretende realizar uma série de exposições, debates e homenagens, além de lançar uma biografia do autor e uma nova edição de seus poemas em cordel, compostos na década de 60.
Em seu apartamento, em Copacabana, no Rio de Janeiro, Ferreira Gullar fala sobre a gênese do poema, a necessidade de escrever poesia engajada e justifica o seu fazer literário: “A poesia existe porque a vida é pouca.”

Você tem noção de que é o maior poeta brasileiro?
Eu acho ótimo que as pessoas digam isso. É bom ser acolhido, reconhecido, porque eu escrevo para os outros. Mas eu perguntaria da mesma forma como o Drummond perguntou uma vez: “Qual é a régua que usaram para medir isso?”.
Qual é o seu objetivo como poeta?
Ajudar o leitor a estar bem na vida, a ter uma visão da vida mais rica, mais generosa. Eu acho que o poeta inventa a vida. Todos nós nos inventamos e reinventamos a vida. O cara nasce, ele não é nada, não é ninguém. Ele não tem nome, não sabe falar, não tem noção de nada. Depois, passa a ser educado. As outras pessoas que já existiam ajudam a dar uma noção da realidade a ele, que, com o tempo, começa a se inventar, a pensar por sua conta, a discutir o que é ensinado. A vida é assim: a vida é pouca. E a poesia faz parte dessa invenção da vida. A poesia existe porque a vida é pouca.
Você chega a demorar até uma década para lançar um livro de poesia, mas sempre está publicando livros teóricos sobre arte. Qual a diferença em compor estes dois gêneros?
Eu não decido quando vou escrever um livro no terreno da poesia. Escrevi, recentemente, um livro sobre a arte concreta e neoconcreta. O livro tinha um objetivo, eu sabia o que iria escrever. A poesia não é assim. Eu não planejo. De repente, surge um poema, alguma coisa da vida me surpreende, me espanta, me maravilha, eu me questiono e resulta em um poema. Esse poema vai se juntar a outro, que vai compor um livro. Tem unidade? Tem. Não foi planejado, mas tem unidade. A unidade sou eu mesmo, porque na hora em que a vida me espanta, a resposta que eu dou tem a ver com as coisas que estou pensando. É a mesma pessoa que está respondendo aqueles espantos, aquelas surpresas.
Como é a gênese do poema?
Em geral, o que deflagra o poema sempre é uma emoção. O poema sempre nasce quando algo me surpreende. Às vezes, eu escrevo um poema e, depois de meses, quando releio o poema para consertar alguma coisa, daquele mesmo poema nasce um outro, como se fosse um galho, uma outra coisa inesperada. Não é só a vida que surpreende a gente. A própria poesia também surpreende a gente. E eu sempre me emociono, porque é a descoberta de um lado inesperado das coisas.

Em qual poema a emoção foi mais intensa?

O poema em que eu fiquei mais tempo nesse estado foi o Poema Sujo. Há certos poemas em que eu fico meia hora, até mesmo um dia, em um estado especial que me faz escrever o poema. Mas passar meses, emocionado, como no caso do Poema Sujo, foi inesperado. Isso nunca tinha acontecido antes, nunca aconteceu depois e eu acho que dificilmente voltará a acontecer.

Você é muito exigente com seus poemas?
Eu sou muito exigente com o que eu escrevo. Até aquilo ser dado como pronto, demora. E mesmo que não demore tanto, passa por um crivo de muito rigor. Para escrever bobagem, eu não deixo nascer. Como qualquer pessoa, estou sujeito a entrar por um descaminho qualquer. Eu não tenho complacência comigo. É preferível escrever dois poemas bons, do que escrever dez mais ou menos. O livro não precisa ser grande: ele tem que ser bom.

Gullar, como é que você analisa as críticas que fizeram sobre as suas obras? A crítica sempre foi justa com você?
Quando eu publiquei “A Luta Corporal”, eu fui chamado de vigarista e de maluco (risos)! A crítica se dividiu. Uns diziam que era um livro genial, que iria mudar a poesia brasileira, e outros afirmavam: “Esse cara é um vigarista!”. Houve críticos de prestígio que escreveram contra o livro e, depois, se arrependeram. Mas eu entendo. Eu também já errei, opinando sobre pintores, fazendo crítica de arte. Por muitas vezes, fui injusto com um ou outro artista. Eu sou um crítico rigoroso com relação à arte contemporânea. Na maioria das vezes, acho que não é arte.

Por que não compor crítica literária?
Eu não gosto de escrever sobre literatura. Eu não me considero um crítico literário. Não gostaria de ser critico literário. Acho que não condiz com a minha condição de poeta e de escritor, escrever sobre a poesia dos outros, criticar a poesia dos outros. Não tem cabimento fazer isso.

A falta de engajamento político na literatura contemporânea é uma característica boa ou ruim?
Estar engajado ou não estar engajado politicamente é uma opção de cada escritor. Eu estive engajado politicamente em um momento em que a coisa política era muito presente no País. Havia a luta pela reforma agrária, pela reforma da sociedade. Hoje, isso não está na pauta. Se alguém quiser fazer poesia engajada, tudo bem. É uma opção. Não é obrigado a fazer, nem é crime fazer.

O povo brasileiro é um bom público de literatura?
Não é como deveria ser. Um País do nosso tamanho, com uma população de quase 190 milhões, deveria ter um público maior. Mas está melhorando, e eu acho que, pouco a pouco, esse público vai se ampliando. Essas coisas são muito difíceis. Não é uma coisa para acontecer de repente. Não há uma fórmula para resolver isso.

Publicada na Folha de Londrina (07/05/09).

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A nova fase de Júpiter Maçã

Músico gaúcho surpreende o público maringaense com performance sóbria; em entrevista, revela viver um momento de “checagem e retrospecto”

Flávio Basso recentemente passou três meses enfurnado em uma chácara, a fim de realizar uma “checagem existencial”, de acordo com a sua própria definição. Mal terminou o retiro, Basso, que responde pelo codinome de Júpiter Maçã, já está demonstrando algumas mudanças em seu comportamento imprevisível.

Quem esperava contemplar o roqueiro camaleônico completamente embriagado, rolando pelo palco do Tribos Bar, ao melhor estilo Amy Winehouse, frustrou-se. Sereno e tranquilo, Júpiter Maçã apresentou seu último disco, o excelente ‘Uma Tarde na Fruteira’, pela primeira vez em Maringá, no último fim de semana.

Em entrevista para a FOLHA, o músico multifacetado afirma que está vivendo um momento de reflexão e que sua obra é “mais expansiva” do que o cenário underground.

Você se considera um artista camaleônico?

Eu tenho observado que eu sou um cara que muda muito de trabalho para trabalho e cada fase, de certa forma, consegue ser traduzida em álbum. Eu sou um artista bem mutante ou mutável. Olhando para mim, em retrospecto, eu detecto o quão eu me transformo.

Qual é a sua fase favorita?

É difícil dizer a minha fase favorita. Tem algumas coisas introspectivas, outras mais glamurosas. Tem o período mod, o exibicionista e os períodos mais lisérgicos, em que eu não brincava de lisergia, era uma coisa séria. Eu vivi todos os períodos intensamente. Agora estou em um período de olhar para todos eles. É um período de checagem e retrospecto, de revisitação, de “look around”. Esse show atual tem passado por todos os momentos da minha carreira. Mas eu continuo criando e eu já tenho as novidades. Eu sinto um disco latente chegando, que pretendo começar a gravar nas próximas semanas. Esse disco vai traduzir o meu período atual.

Como você lida com o cenário independente?

É um independente que fica de raspão no mainstream. O main flerta comigo e eu acabo, por várias circunstâncias, sendo um artista indie.

E com relação ao universo underground?

Embora minha formação, e desde que eu adotei o pseudônimo Júpiter Maçã, minha escola seja underground, eu não me considerado aprisionado ao underground. Minha essência pode ser under, mas a obra é mais expansiva. Eu não tenho que lutar por certos valores.

O que você acha da diferença entre idades do seu público?

O público vai da faixa dos teens até os quarentões, os cinquentões. Eu acho isso muito interessante, porque por trás disso tem a arte. A soma do que poderia traduzir o meu trabalho é música, são os poemas, a maneira como eu concebo isso em um álbum, o jeito da interpretação, o grupo que está envolvido trabalhando comigo, tudo isso é um reflexo da engrenagem.

É possível ganhar dinheiro com rock?

Existem bons momentos e maus momentos. Eu faço um malabarismo com as minhas equações.

Qual foi a maior lição que você aprendeu no cenário underground?

Nunca seja um bunda mole!

Publicada na Folha de Londrina (22/04/09).

A traição de Chico Buarque

Envolvida em uma poderosa articulação de marketing, a nova obra literária do cantor e compositor Chico Buarque, Leite derramado - que teve 70 mil exemplares impressos para a primeira edição -, chegou às livrarias, disponível em dois formatos de capa e possui até mesmo um site, em que o escritor faz a leitura de um excerto do texto.

O esquema arquitetado não é à toa. Ao lado de Cristovão Tezza, Milton Hatoum, Bernardo Carvalho e João Gilberto Noll, Chico Buarque vem sendo apontado como um dos futuros cânones da literatura brasileira.

Seu último livro, Budapeste (2003), vendeu 275 mil exemplares, garantiu um Prêmio Jabuti ao autor e, em maio, deve finalmente estrear no cinema nacional, com o elenco formado pelos atores Leonardo Medeiros e Giovanna Antonelli. A história de Leite derramado é narrada em primeira pessoa, por Eulálio Montenegro D'Assumpção, uma personagem de cem anos que, à beira da morte, revela os fatos de sua vida para enfermeiras, o médico e sua filha - figuras que, aliás, podem ser o resultado dos devaneios do próprio narrador -, em um hospital.

Por meio de fluxos de consciência e da memória fragmentada de Eulálio, filho de senador, pertencente a uma abastada e tradicional família, Chico Buarque aborda a decadência da elite da época e dos Assumpção. No cerne do livro, há o envolvimento amoroso entre Eulálio e Matilde, que a exemplo de Dom Casmurro, de Machado de Assis, também levanta dúvidas sobre a infidelidade da personagem feminina com o melhor amigo do narrador.

Em Leite derramado, o francês Dubosc passa a omitir certas informações ao amigo Eulálio, como por exemplo, a quantidade de vezes que frequentou a sua casa, localizada próximo ao mar, em horários em que apenas Matilde estaria na residência para recebê-lo: "Eu olhava a areia nas juntas do assoalho, e quando lhe perguntei por Dubosc, Matilde confirmou que ele trocara de roupa em casa, mas mal o havia visto", provoca o narrador, deixando o leitor interpretar se houve ou não a traição.

As comparações com Machado de Assis não terminam na possível relação extraconjugal das personagens. Repleto de preconceitos, Eulálio se manifesta de forma ácida contra nordestinos, negros e pobres, durante toda a obra, aproximando-se das irascíveis personagens machadianas. Chico Buarque ainda consegue estabelecer, por meio da narração, diálogos com o leitor da mesma forma com que Machado fazia.

Os pecados de Chico Buarque, em Leite derramado, estão concentrados na necessidade do escritor em retomar diversos clichês. Mas ele até consegue realizar alguns momentos poéticos, como na passagem em que discorre sobre o ciúme, que chega a ser definido como "a espécie mais introvertida das invejas".

Seguindo as características de Estorvo (1991) e Benjamin (1995), o literato novamente escreve em primeira pessoa, resgatando lembranças e utilizando constantes alterações nos tempos verbais, que acrescentam suaves toques de vertigem à narrativa.

Quem esperava algo melhor do que Budapeste, pode vir a se decepcionar, pois nem a história, nem a prosa poética são tão boas e originais dessa vez. No entanto, a nova obra de Chico Buarque está longe de ser um livro ruim.

Publicada em O Estado do Paraná (19/04/09).

O eterno romantismo do Roupa Nova

Em Maringá, integrante da banda diz que ainda se emociona tocando ‘Whisky a Go Go’ e afirma que o grupo merece ‘um pouco mais de respeito’

Gravado no lendário estúdio Abbey Road, onde os Beatles imortalizaram a maior parte de suas canções, “Roupa Nova em Londres” é o novo disco de inéditas do sexteto carioca, que põe fim a um jejum de oito anos sem lançar um CD dedicado exclusivamente às novas composições. Na última sexta-feira (3), o grupo apresentou o show da nova turnê, em Maringá, à beira da piscina, no Country Clube.

Munida de um dos repertórios mais conhecidos do pop nacional, que conta com músicas como “Dona”, “Anjo”, “Seguindo no Trem Azul” e “Whisky a Go Go”, a banda alternou o formato do show entre o acústico e o elétrico.

Além de alguns vídeos exibidos nos telões, reunindo imagens dos músicos tocando na Inglaterra e até um boneco de placa de trânsito que interagia com a plateia, pouca coisa diferenciou a atual apresentação da banda das apresentações realizadas entre as décadas de 80 e 90. Quanto à presença de músicas novas – apenas três canções foram incluídas, o público respondeu de forma indiferente. Para recuperar o ritmo do show, os integrantes cinquentões tiveram de recorrer novamente aos sucessos românticos, executando “Sapato Velho”, “Meu Universo é Você” e “Chuva de Prata”.

No bis, o Roupa Nova se propôs a homenagear os grandes nomes da música, tocando alguns covers, em um longo pout-pourri. Misturando Bee Gees com Pink Floyd, Rolling Stones, Creedence e Guns and Roses, o Roupa Nova encerrou o show e a sua homenagem inusitada aos clássicos do rock com “Rock and Roll all Nite”, do Kiss.
Em entrevista concedida antes da passagem de som, em Maringá, o tecladista e um dos vocalistas do Roupa Nova, Ricardo Feghali, falou sobre o novo disco da banda e rechaçou o rótulo de “brega”, afirmando que o Roupa Nova merece ser tratado pela crítica com “um pouco mais de respeito”.

Qual foi a primeira sensação ao entrar no Abbey Road?

Taquicardia (risos)! Nós quase morremos do coração! Eu pensava em tudo aquilo que aconteceu lá dentro: Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd e U2. Aí, eu falei: Pôxa, eu sou do Roupa Nova! O que eu estou fazendo aqui? O som da sala é maravilhoso, nunca foi reformada. Foi lindo, emocionante. Vocês já regravaram algumas canções dos Beatles.

Por que escolheram gravar She´s Leaving Home nesse novo disco?

A gente sempre teve uma influência muito forte dos Beatles. Nos shows do acústico um, incluímos “Hey Jude” e “Yesterday”. No Roupa Nova, todas as decisões são votadas: a maioria leva. Dessa vez, a gente decidiu entre “She’s Leaving Home”, “Because” e “Eleanor Rigby”.

Vocês hesitaram em gravar esse disco de inéditas?

Hoje em dia é muito perigoso fazer um disco inédito, porque as pessoas ficam sempre comparando as novas músicas com os grandes sucessos, e, na verdade, não tem de fazer comparação. Nós só resolvemos fazer o inédito, quando sentimos que o nível de composição estava alto, estava bacana.

Qual a diferença entre o Roupa Nova de agora e o Roupa Nova de 1981, do primeiro disco?

A diferença desse novo disco é que nós estamos mais maduros. A gente está cada vez mais ouvindo, aprendendo e tocando. O Roupa Nova não tem um líder, um cara que fala mais e um cara que fala menos. A gente vai um aprendendo com o outro, aprendendo com o público e aprendendo com a vida.

O grupo já foi rotulado como “brega”, em diversos momentos da carreira. Por que você acha que isso aconteceu?

Isso aconteceu porque a gente começou como uma banda de baile e sempre estouramos com músicas românticas. E, na visão de algumas pessoas, a música romântica é brega. Eu não acho isso. Música romântica é música romântica. A crítica deveria olhar um pouquinho para trás e ver que a nossa banda, que tem quase 60 sucessos, merece só um pouco mais de respeito. Pô, a gente tem quase 30 anos de carreira!

É possível compor sobre o amor sem ser cafona?

Claro! Tem uma dosagem, uma maneira certa de não ser piegas, ao falar sobre o amor com um pouco de poesia. Não é chato ter de tocar “Whisky a Go Go” em todas as apresentações? Não é chato tocar, porque o pessoal interage tanto e o carinho da galera é tão grande que a gente fica mocionado como se fosse o primeiro show.
Publicada na Folha de Londrina (09/04/09).

Rafinha Bastos evita humor engajado

Durante show em Maringá, o apresentador do CQC elogia Lula mas não poupa críticas a Collor e Jarbas Vasconcellos

Padre Marcelo, pagodeiros, judeus, Xuxa e até moradores de Rondônia: todos foram alvos do comediante Rafinha Bastos, apresentador do programa televisivo CQC (Custe o Que Custar), no espetáculo humorístico intitulado A Arte do Insulto. Rafinha, que costuma satirizar o universo da política brasileira na bancada do CQC, encontrou o Teatro Marista, em Maringá, completamente lotado por jovens e adolescentes, durante as duas sessões realizadas esta semana na cidade.

“Ronaldo (o fenômeno) é tão gordo que tentou entrar na internet, e não conseguiu. Adivinhe por quê? Ele não coube”; “O programa de TV do Padre Marcelo é feito para velhinhas com Alzheimer”; e diversas outras piadas, impublicáveis, revelaram que, pelo menos no palco, política é um assunto a ser evitado. Citações sobre o atual momento político e irônicas críticas sociais – as maiores qualidades do CQC – não foram explorados como recursos cômicos.

Durante esta entrevista concedida minutos antes da apresentação, Rafinha Bastos afirma que a eleição do ex-presidente Fernando Collor de Mello (PTB-AL) para presidir a Comissão de Infraestrutura do Senado, é “uma palhaçada”, e diz que as polêmicas declarações do senador Jarbas Vasconcellos (PMDB-PE), publicadas recentemente na Revista Veja, revelam que o peemedebista está “um pouco gagá”.

Como você analisa a qualidade dos programas humorísticos veiculados na televisão brasileira?

É preciso pensar que a TV aberta é para o povo. Zorra Total e A Praça É Nossa, os dois grandes programas de humor, estão no ar durante todo esse tempo porque eles tem qualidade. Eles podem não ser atraentes para pessoas como eu, com terceiro grau completo, ensino superior e formação cultural, mas se esses programas conseguiram ficar no ar, é porque são bons.

O humor do CQC consegue cumprir uma função social?

O principal objetivo do CQC é divertir. É um humor engajado, tem uma pegada mais jornalística e aborda temas como política e economia. Eu não tinha referência de alguém que já havia misturado jornalismo com humor. Eu acho que eu consegui cumprir uma função social em algumas matérias. Eu fiz uma matéria sobre a situação das creches, em Curitiba; cheguei a fazer uma matéria sobre cestas básicas e sobre cadeias de favores. O quadro Proteste Já, no programa, também cumpre uma função social.

É fácil fazer piada em um país como o Brasil?

É ainda mais difícil, porque a concorrência é mais forte. A piada já está pronta no Brasil, e é preciso tomar cuidado para não ser repetitivo. Nada é mais engraçado do que uma sessão do Senado. O Brasil é um país rico para a comédia. O humorista só precisa ser engraçado e criativo.

Qual a sua opinião sobre o ex-presidente Fernando Collor de Mello presidindo a Comissão de Infraestrutura do Senado?

Eu realmente não entendo como esses caras voltam. Eles são meio Highlander. O Michel Temer (PMDB-SP) já está no terceiro mandato como presidente da Câmara dos Deputados. O José Sarney (PMDB-AP) também foi eleito novamente para a Presidência do Senado. O caso do Collor é uma palhaçada, é uma patifaria, é triste. A classe política está tirando sarro da nossa cara. Apareceu até um cara com um castelo!

Você acha o senador Jarbas Vasconcellos (PMDB-PE) um sujeito oportunista ou íntegro?

Ele está um pouco gagá. Ele soube da situação do PMDB a vida inteira e fez uma declaração vazia, sem apontar nomes. É corajoso, mas vazio. É preciso falar de quem se trata. Não adianta ofender de uma forma covarde. Além do mais, ninguém foi atrás, investigar do que se trata.

O presidente Lula Inácio Lula da Silva é um bom presidente?

O presidente Lula é um bom presidente que foi ajudado pelo cenário internacional, em uma época maravilhosa. Mas hoje, nós estamos vivendo tempos difíceis. Somente com o próximo presidente, vamos entender se o Lula era mesmo “o cara”.

Publicada na Folha de Londrina (12/03/09).

A grande arte de Rubem Fonseca

O recluso escritor mineiro fala sobre literatura, mulheres e dá conselhos a jovens escritores, em dois rápidos encontros no Rio de Janeiro

Alexandre Gaioto, estudante do quarto ano dos cursos de Jornalismo (Centro Universitário de Maringá) e Letras (Universidade Estadual de Maringá), se propôs uma missão quase impossível: entrevistar o escritor Rubem Fonseca, um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea e notoriamente avesso ao assédio da imprensa.

Gaioto foi até o Rio de Janeiro, onde Fonseca vive, e consegiu conversar com o autor de A Grante Arte, Agosto e O Caso Morel. Leia abaixo um relato de sua aventura.

Considerado um dos maiores escritores brasileiros vivos, Rubem Fonseca, de 83 anos, não concede entrevistas e raramente permite ser fotografado. O escritor, que mora em um prédio localizado a poucos metros do mar, escreve diariamente, em seu notebook, das quatro às oito horas da manhã. Em seguida, parte para sua caminhada matinal pelas ruas do Leblon, no Rio de Janeiro, onde reside.

No último dia 16 de janeiro, abordei José Rubem Fonseca na rua onde ele mora. Vestindo calça jeans, camiseta branca e boné cinza, o escritor voltava do supermercado, lentamente, carregando dois litros de leite em uma sacolinha.

Ao me apresentar como acadêmico de Letras, da Universidade Estadual de Maringá – omito que também estudo Jornalismo –, informo que viajei do interior do Paraná apenas para conhecê-lo, e que sonho ser escritor. Fonseca, com uma voz rouca, não esconde seu espanto: “Como você me encontrou aqui?”

Enquanto autografa os dois livros que eu lhe mostro, o escritor revela seus três autores prediletos, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar: “Poesia é o gênero que eu mais gosto de ler”, diz Fonseca, antes de desejar-me boa sorte, atravessar a rua e entrar no prédio.

No dia seguinte, empunhando uma máquina fotográfica, volto ao prédio dele para tentar arrancar mais algumas palavras e uma rara imagem do recluso escritor. Por volta das 10 horas, Fonseca sai para sua tradicional caminhada, desta vez com a missão de devolver dois filmes em uma locadora.

Sem desconfiar de que está sendo fotografado, Fonseca devolve os DVDs senta-se em um banco de madeira, na calçada, onde é reconhecido por uma leitora de 60 anos. Após ele se esquivar cordialmente de um convite para jantar a sós com a admiradora, sento-me ao seu lado para mais alguns minutos de conversa.

Segundo o escritor, que só participa de sessões de autógrafos e ministra palestras quando está no exterior, a distância dos meios de comunicação sempre foi uma estratégia para garantir o anonimato.

“Aqui no Leblon, todos sabem onde o João Ubaldo Ribeiro mora, porque a cara dele sai estampada nos jornais durante toda semana. Eu nunca quis isso para mim! Você é um cara legal, bem-humorado e quer ser escritor. Mas também tem muita gente chata!”, me diz.

A única entrevista concedida pelo escritor para um canal de televisão brasileiro foi na Alemanha, em 1989, durante a queda do muro de Berlim. A então namorada de Fonseca, ao identificar uma equipe da Rede Bandeirantes, sugeriu ao repórter que entrevistasse seu namorado brasileiro.

“Na entrevista, eu disse que nós estávamos vivendo um momento histórico. Quando a matéria veio para a edição, no Rio de Janeiro, o chefe de jornalismo ficou louco, porque o repórter não me reconheceu! Eu disse apenas que meu nome era José Fonseca. Depois disso, o jornalista ficou me procurando lá na Alemanha para tentar uma entrevista exclusiva, mas nunca mais me achou.”

Durante as respostas, é comum o escritor contemplar, com olhares e sorrisos maliciosos, as sensuais mulheres que caminham nas ruas com shorts minúsculos. Quando uma loira e uma morena passam pela nossa frente, Fonseca esquece a resposta que formulava, e desabafa: “As mulheres são incríveis, você não acha? As morenas são as minhas favoritas. E você, prefere qual?”, indaga.

Censura

Os livros de Rubem Fonseca, repletos de violência, estupros e assassinatos, são repudiados pelos leitores mais conservadores. Abusando de um erotismo sarcástico, símbolos fálicos e de uma linguagem agressiva, o autor domina, com maestria, a arte de perturbar.

“O escritor tem de escrever o que ninguém quer ler. Para escrever o que todos querem ler, existem os jornalistas. O meu editor já me disse, uma vez, que ninguém ia gostar do meu texto. E eu disse a ele que, seu eu quisesse escrever sobre gosma, merda e sexo, eu iria escrever”, diz.

Durante a ditadura militar (1964-1985), uma de suas obras, Feliz Ano Novo (1975) chegou a ser proibida pelo então ministro da Justiça, Armando Falcão, sob a alegação de “exteriorizar matéria contrária à moral e aos bons costumes”. A ditadura não amedrontou o gênio provocador. “Eu nunca tive medo quando os meus livros foram censurados. Eles censuraram o Feliz Ano Novo por uma babaquice. Então, eu resolvi escrever O Cobrador (1979), que é muito mais pornográfico e muito mais violento.”

Conselhos

Para Rubem Fonseca, os aspirantes a escritores nunca devem caminhar sem um bloco de notas. Comprovando a importância do conselho, o escritor exibe um caótico e minúsculo bloquinho, sacado de um dos seus bolsos. Manter uma rotina e, sempre que possível, retomar o texto para reescrevê-lo, são outras preciosas dicas do autor.

“Escrever é um exercício diário. Mesmo que seja uma linha, é preciso escrever todo o dia. É preciso também sempre reescrever o texto. Há sempre uma forma de melhorar a obra”, aconselha.

Para encerrar a conversa, digo a Rubem Fonseca que, daqui a 40 anos, certamente haverá uma estátua dele, no calçadão do Leblon, a exemplo da estátua de Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana. Sorrindo, o escritor ironiza: “Se fizerem mesmo essa estátua, eu quero estar agarrando uma gostosa.”

Publicada na Gazeta do Povo (14/02/09).

O ano ruim de J. M. Coetzee

O último romance do Nobel sul-africano J. M. Coetzee poderia ter sido transformado em um livro de ensaios ou até mesmo em um livro de crônicas. Mas o ganhador de dois Booker Prize não abriu mão de suas deliciosas personagens aparentemente vazias, nem do gênero que domina.

“Diário de um ano ruim” é na verdade um romance composto por três livros. Cada página está dividida por linhas pontilhadas ora em duas, ora em três seções. Na primeira seção, Coetzee organizou os filosóficos ensaios articulados pelo seu alter ego, o veterano escritor Señor C, que, a pedido de um editor alemão, está produzindo um livro sobre suas opiniões, abarcando o período de 12 de setembro de 2005 a 31 de maio de 2006.

Nas outras duas seções de cada página, como se fossem notas de rodapé, Coetzee delimita o envolvimento de três personagens, que até então eram cordiais vizinhos no edifício Torres Sydenham: uma sensual secretária filipina, Anya, contratada pelo escritor para digitar suas idéias em seu apartamento; seu companheiro ciumento – o vilão do livro –, Alan; e o renomado literato Señor C. O enredo da obra é simples. Alan, o ciumento, imagina que sua mulher esteja seduzindo o escritor – o que é verdade. Em conversa com ela, Alan sugere um plano para roubar o dinheiro de Señor C. A proposta do vilão, de roubar um velho e solitário escritor não seduz a secretária, que passa a reavaliar o homem com quem está vivendo.

O envolvimento entre a tríade de personagens é todo narrado em primeira pessoa pelas próprias personagens, a partir de um recurso muito utilizado em produções cinematográficas, em que os núcleos da história se desenvolvem independentes. Na literatura, a apropriação de Coetzee exige que o leitor defina uma estratégia de leitura.

Caso resolva seguir a ordem das seções, lendo uma página inteira por vez, o leitor desavisado pode se aborrecer facilmente. Afinal, a narrativa de cada seção atravessa outras páginas e o sujeito, por muitas vezes, é obrigado a retornar à página anterior para retomar o raciocínio do romance ou dos ensaios. Uma segunda opção é acompanhar apenas uma das seções e ignorar as demais. Embora as duas estratégias revelem a história de uma mesma forma, é mais prazeroso seguir as veredas do desconforto, acompanhando as três seções em uma mesma página.

Entre as posições de Señor C, que assim como J. M. Coetzee também é um literato sul-africano radicado na Austrália, não faltam reflexões sobre a política dos Estados Unidos, da Austrália e da África. Em seus ensaios políticos, que chegam a lembrar os ensaios do lingüista Noam Chomsky, Señor C critica a pseudo liberdade dentro do regime democrático, avança sobre figuras políticas como Tony Blair e Richard Cheney e disserta sobre a função do Estado.

Em alguns momentos, como no capítulo dedicado às atrocidades cometidas na base militar de Guantánamo, Coetzee distancia-se de Chomsky e se aproxima da ironia das crônicas machadianas do final do século XIX, quando Machado de Assis escrevia sob o pseudônimo de Lélio.

Na maioria de suas obras, o Nobel sul-africano é sempre cuidadoso com a forma com que produz suas críticas. Em sua obra-prima, Desonra (1999), Coetzee exibe a guerra de territórios, a violência e os problemas sociais na África pós-apartheid, com críticas artisticamente romanceadas. Já em “Diário de um ano ruim”, a crítica está cercada no espaço do próprio livro, numa voz explicitamente engajada de Coetzee.

“Diário de um ano ruim” não é apenas uma compilação de ensaios sobre política, de um Nobel intelectual. Escarafunchando as atitudes de figuras públicas e de cidadãos comuns, J. M. Coetzee transforma a escória dos seres humanos, em uma profunda obra de arte.

Autor: J. M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 39,00 (241 págs)
Avaliação: Bom

Publicada em O Diário do Norte do Paraná (17/12/08).

Oasis acerta a mão em 'Dig out your soul'

Mais de uma década de sexo, drogas e rock and roll garantiram aos líderes do Oasis, os irmãos Liam e Noel Gallagher, a fama de vaidosos e desprezíveis. Brigas constantes, declarações polêmicas, shows interrompidos e acusações de serem plagiadores dos Beatles marcaram a trajetória da banda. Com o oitavo disco de estúdio, “Dig out your soul”, o Oasis volta maduro, menos polêmico e se aventura até pelas veredas da psicodelia.

As duas faixas que abrem o álbum, “Bag it up” e “The turning”, interpretadas por Liam Gallagher, revelam logo no início que o Oasis não perdeu a fórmula para melodias e refrões arrebatadores, que remetem ao clima do primeiro álbum, o aclamado “Definitely maybe”.

Os riffs de guitarras e a forte pegada do baterista Zack Starkey marcam a excelente “The shock of lightnin”. Zack Starkey, filho de Ringo Satrr, já havia participado da gravação “Don’t believe the truth” (2005). Em “Dig out your soul”, ele retorna e acrescenta criatividade e potência em faixas como “Ain’t got nothing”, superando o limitado ex-baterista, Alan White.

Já a psicodélica “To be where there’s life”, conduzida pelo baixo de Andy Bell, é reflexo do domínio do Oasis com relação aos limites do experimentalismo musical. Sem exageros, a banda mostra sua comportada e efêmera psicodelia.

A balada do disco – todo álbum do Oasis tem pelo menos uma – fica por conta de “I’m outta time”, composta por Liam Gallagher. A canção homenageia John Lennon, assassinado em 8 de dezembro de 1980, e reproduz o áudio de uma entrevista do ex-beatle concedida no ano de sua morte. Com um belo e pegajoso refrão, “I’m outta time” é uma das baladas mais interessantes de toda a carreira do Oasis.

Noel Gallagher aparece discreto em apenas três faixas, tempo suficiente para se destacar em “Falling Down” e “Waiting for the rapture”. Em “Dig out your soul”, Noel está cantando mais à vontade, explora bem os falsetes e privilegia as canções rápidas.
Shows no Brasil

O Oasis possui apresentações marcadas até março de 2009. Mesmo com agenda lotada, o Oasis deve voltar ao Brasil – caso os boatos se confirmem – ainda no início do ano que vem. A esperança dos fãs é que o grupo inclua no roteiro o Rio de Janeiro e outras capitais, pois em sua última passagem pelo território brasileiro, em 2006, o Oasis se apresentou em São Paulo, para apenas 14 mil pessoas.

Nos shows que vem realizando com a nova turnê, os ingleses têm privilegiado as músicas deste novo e excelente disco. Os vídeos disponibilizados no youtube, pela MTV americana e pelos próprios fãs, mostram o guitarrista Noel Gallagher com a voz impecável. O vocalista Liam, por sua vez, está cada vez mais rouco e desafinado. A versão ao vivo de “I’m outta time” é péssima. As novidades do repertório ficam por conta de “Slide Away” (1994), canção do primeiro disco, resgatada de forma inesperada, e uma emocionante versão acústica de “Don’t look back in anger”. Os sucessos “Cigarettes and alcohol”, “Wonderwall” e “Morning Glory” permanecem no set list do Oasis.

Publicada em O Diário do Norte do Paraná (02/12/08).

O universo sexual de João Gilberto Noll

Recebido com certa apatia pela crítica especializada, o novo livro do escritor gaúcho João Gilberto Noll, “Acenos e afagos”, repete a fórmula adotada pelo autor em “Berkeley em Bellagio” (2002), todo escrito em um único e vertiginoso parágrafo, sem separação entre os capítulos.

“Lutávamos no chão frio do corredor”, a primeira frase de “Acenos e afagos”, inicia a descrição da primeira aventura sexual do narrador – que não possui nome –, ainda quando jovem, com seu colega de colégio: “a luxúria adulta estava então lançada”.

No desenvolvimento da obra, o leitor encontra uma rica prosa poética, a partir de metáforas, sonoridades e imagens, descritas concomitantemente de uma forma marginal e erudita. Se Noll expõe os símbolos fálicos e utiliza uma linguagem antiacadêmica, por outro lado, exibe um vocabulário profusamente erudito.

O narrador de “Acenos e afagos” é um prisioneiro infeliz. No início, ele é casado, administra uma fazenda, tem um filho e não está satisfeito sexualmente. Moralmente aprisionado, o narrador passa a manter relações sexuais com desconhecidos. A sujeira é seu afrodisíaco.

O enredo rocambolesco da obra envolve um narrador homossexual constantemente excitado, que obedece a seus instintos e sente-se atraído, inclusive, por uma velha de oitenta anos e por uma cabra; um misterioso submarino alemão, onde os presentes protagonizam suas orgias e gozam o turbilhão da libido; e até a catalepsia do próprio narrador, que volta à vida graças ao seu amigo engenheiro, suspeito de envolvimento com o narcotráfico.

Mesmo quando abandona a família, para viver com o amigo engenheiro – o mesmo personagem envolvido na luta corporal do início do livro –, o narrador continua um prisioneiro. Ele aceita viver a rotina de uma mulher submissa, passiva, alienada, incumbida apenas das responsabilidades relacionadas à limpeza da casa, às refeições e ao sexo diário, no interior do Mato Grosso.

A metamorfose sexual e psicológica do narrador, que se transforma ora em mulher, ora em homem, em seu monólogo interior, é a passagem mais interessante do romance.

Entre os acenos e afagos que desencadeiam os relacionamentos amorosos, João Gilberto Noll impressiona com a atordoada introspecção de seu narrador. O universo sexual de Noll é o mesmo retratado em outros livros: escancarado, infame, amoral. No entanto, em “Acenos e afagos”, uma obra que já é forte candidata ao melhor romance de 2008, Noll retorna ainda mais poético e pornográfico.

Editora: Record
Autor: João Gilberto Noll
Preço: R$ 32,90 (206 págs.)
Avaliação: Excelente

O Gênio Elomar

Lírico ignorado da grande mídia, Elomar Figueira Mello lança livro independente e canta seu universo singular

Foi num pequeno auditório do Espaço Cultural É Realizações, em São Paulo, no último dia 10, que cerca de 80 “cavaleiros” de Elomar Figueira Mello aguardaram, ansiosos, uma apresentação do recluso e mítico músico baiano.

O motivo do concerto foi o lançamento de seu primeiro livro, “Sertanílias”, publicado de forma independente. Aos 71 anos, Elomar raramente concede entrevistas e não permite ser fotografado - nem mesmo nas noites de autógrafos. O excêntrico compositor reside em um sítio, no interior da Bahia, onde cria cabras, compõem canções em dialeto “sertanezo” e comercializa seus álbuns.

Completamente ignorado pelas mídias massificadoras do país e desconhecido do grande público, Elomar engendrou um universo paralelo, em sua obra, estagnado na Idade Média, com direito a reis, rainhas, menestreis, donzelas e cavaleiros. Do outro lado do universo elomariano está o sertão catingueiro, composto pela seca, fome, religiosidade, esperanças e variações linguísticas.
Vestindo preto, das botas ao chapéu, Elomar Figueira Mello sobe ao palco sozinho e logo pede desculpa aos admiradores. “Com a voz assim, não consigo alcançar algumas notas. Mas fazer o quê? Vou me matar?”, brinca o cantor. Após a longa conversa, em que falou sobre a série de shows no território lusitano e sobre o resfriado, que o impediria de cantar algumas canções, Elomar passa a murmurar heroicamente, entre uma tosse e outra, os versos iniciais de sua primeira canção gravada, “O violêro” (1968), sobre um músico errante, ambientada num cenário medieval e sertanejo. Um artista único.

Entre as canções do concerto, que dialogam com a música erudita e com a música popular, o compositor faz criticas ácidas ao neoliberalismo econômico, reflete sobre o Deus ocidental e analisa o povo brasileiro. Em clima intimista, executa “Faviela”, destacando, com muito esforço, os belos versos do refrão, enquanto os momentos de tensão e harmonia da letra transfiguram seu rosto.

Poucas vezes o homem sertanejo foi tão homenageado diante do caos urbano e da modernidade de São Paulo como com a obra de Elomar. Antes de encerrar a apresentação, Elomar recorda as injustas críticas dos jornalistas Tárik de Souza e “um tal de Mauricio Kubrusly”, que o classificaram, ainda no início da carreira, como “mais um que desceu do Nordeste em busca do sol”. Segundo o compositor, apenas Tárik se retratou da crítica. “E até hoje eu ainda não encontrei o sol”, ironiza.

A entrevista

“Eu gostaria que as minhas canções fossem ouvidas”, disse o compositor, numa rara entrevista, concedida com exclusividade a O Diário após a apresentação. A única exigência é que não seja fotografado. A decisão do compositor é surpreendente, inclusive, para seus amigos, presentes no concerto.

Elomar, você é um músico, um literato, um intelectual. Daqui a 80 anos, como você vai querer ser lembrado?

Daqui a 80 anos, meu ‘fio’, continuo sem querer tirar retrato (risos). Eu até que me sentiria muito bem, se, para onde eu vou, fosse dado saber das coisas que se passam aqui, dentro desse ‘bugaiau’, chamado planeta Terra. Eu gostaria de saber que eu fui completamente esquecido, jogado no ostracismo. Mas jogado dentro de uma ostra e jogado dentro do fundo, do mais profundo mar. Isso sim, o ostracismo. Eu gostaria que as minhas canções fossem ouvidas, admiradas, amadas e levadas em consideração. Canções como “Arrumação”, “O pidido”, “Auto da catingueira”, que falam sobre os retirantes, da peregrinação do homem na terra, dos vaqueiros, do homem do campo, sobretudo, que sempre foi alijado pela sociedade urbana, pelos urbanoides. Não precisam saber o nome do autor.

E, se um dia, suas músicas fossem massificadas, executadas exaustivamente na rádio, como você se sentiria?

Dentro do caixão, eu me viraria todo! Se fizessem a exumação do meu corpo, me encontrariam emborcado lá dentro, todo retorcido!

Por que o número sete é tão relevante para você?

Não só o número sete, mas o três, o oito, o um, o quatorze e o quarenta são números que estão constantemente dentro da arquitetura e dentro da História. Moisés, aos quarenta anos matou um nobre egípcio, foi para o deserto, encontrou Jetro, ficou quarenta anos pastorando ovelhas, voltou, e por mais quarenta anos errou pelo deserto, com o povo de Deus, e morreu com cento e vinte. O pior dos números é o seis, porque se refere ao homem, que é a pior parte que tem nessa numerologia sagrada. Dezessete é uma idade muito bonita, muito marcada em minha vida. Eu canto “está fechando sete tempos”, “já cantei nos sete reinos”. Eu canto porque o sete é bonito, porque é belo. O sete é um número sagrado, o número da perfeição. Deus fez o mundo em seis dias e descansou no sétimo. O sétimo é fundamental.
Publicada em O Diário do Norte do Paraná (03/11/08).