sábado, 13 de fevereiro de 2010

O grande sertão de Elomar

Em entrevista exclusiva ao Cultura, o recluso compositor baiano Elomar Figueira Mello avalia sua trajetória artística, faz críticas aos Estados Unidos, à democracia e às massas, ataca a televisão e diz que não grava mais discos
Desde que surgiu no cenário da música brasileira, com ...Das Barrancas do Rio Gavião (1972), cantando em uma linguagem dialetal “sertaneza”, Elomar Figueira Mello já apresentava sua proposta de versar sobre o sertão profundo, retomando o universo medieval. Dialogando com a música popular e a música erudita, o cantor e compositor gravou um total de 15 discos, entre 1972 e 1995, compondo óperas, concertos e canções.
Aos 71 anos, o “príncipe da caatinga”, como definiu o poeta Vinícius de Moraes, raramente concede entrevistas, não permite ser fotografado durante seus concertos e realiza poucas apresentações. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Elomar abandonou a capital assim que concluiu o curso, e retornou ao local onde nasceu, o campo, para criar carneiros, ovelhas e bodes. Na fazenda, que recebeu o nome de Casa dos Carneiros, 20 km de Vitória da Conquista, no interior da Bahia, Elomar compôs praticamente todas as suas obras. E recusou-se a compor contra a ditadura.
Em 2007, realizou algumas apresentações pelo Brasil para lançar Sertanílias, seu primeiro romance, publicado de forma independente. No mesmo ano, viajou a Portugal, onde fez uma pequena série de concertos. Em 2008, cancelou o lançamento do que seria o seu primeiro DVD, resultado de um concerto gravado em 2007, que reuniu uma orquestra, contou com a participação dos músicos Xangai, Saulo Laranjeira e Dércio Marques, e reuniu cerca de 2 mil pessoas na Casa dos Carneiros, oficializando a fundação cultural que hoje existe na fazenda.
Após três horas e meia aguardando a chegada de Elomar, no escritório que administra sua carreira, em Vitória da Conquista, o compositor entra visivelmente transtornado, vestindo uma camiseta com o seu desenho e, na cabeça, o inseparável chapéu de couro.
Na recepção, foi possível ouvir a discussão furiosa do compositor com sua produtora. O motivo? Um vídeo postado por um admirador, no site Youtube, que mostra Elomar tocando Campo Branco, em clima intimista, acompanhado por dois músicos.
Antes de chegarmos à Casa dos Carneiros, no Povoado da Gameleira, paramos na casa de um marceneiro, amigo de Elomar. Conversando com ele, Elomar escuta do amigo que a saúde não vai bem e que o “check up” realizado recentemente exige-lhe novos exames.
– Que o quê? – indaga Elomar.
– Check up – repete o marceneiro.
Dentro de sua camionete, o compositor ironiza a situação:
– A língua inglesa invadiu até a caatinga.
Você viveu e adquiriu conhecimentos no campo e na cidade. Você se considera um sujeito híbrido?
Não, eu não sou híbrido. Sou mais um analista, um observador urbi et campi, um observador da cidade e do campo. Eu me vejo como um historiador, um cronista dessas culturas contraponentes e paradoxais: a sociedade roçariana versus a sociedade urbanoides. Desde muito cedo, descobri que a vida urbana, o processo, o desenvolvimento urbano e técnico, a mentalidade tecnicista do século 20, é prejudicial. A cidade é a tenda de urdir o mal, as coisas ruins, o lixo espiritual ético, moral e físico.
Quem é o seu público?
Meu público vai de um catedrático de História, de Antropologia, de Letras, da USP, da Federal da Bahia, da Federal do Rio de Janeiro, a um simples mecânico da linha Rio-Bahia, com as unhas atoladas de graxa, a um simples vaqueiro do campo, um pequeno barqueiro da feira de Vitória da Conquista. Meu público, ou é o peãozinho lascado de baixo, que é atraído pela temática e pela linguagem dialetal, ou é um intelectual. Fica nessa faixa, cortando o elemento do miolo. O meio do corpo, aquele público mediano, não é público meu. Esse meião é o público do produto dos meios de comunicação. Não precisa citar nome, você já sabe quem são eles. Esses, que têm nome no Brasil inteiro. O meio campo intelectual não gosta de Elomar. Em outras palavras, não é eleito, porque o meu público é formado por gente eleita.
A massa não é o seu público?
A massa, para você, é o que eu chamo de canalha? A canalha jamais terá acesso à minha obra. A massa não tem parte com a minha obra, mesmo porque a massa não gosta da minha obra. Eu não gosto da massa. Apenas, tenho compaixão da massa. Tenho pena e dó da massa, que é o meu dever de cristão, pela brutalidade dela.
É possível encontrar a identidade do povo sertanejo em sua obra?
A proposição minha é cantar a cultura de um povo que se identificara. Por intermédio das minhas lembranças, das minhas vocações, daquele passado bonito, glorioso, em que existia aquela nação “sertaneza”, comungando os mesmos valores. Mas hoje, infelizmente, não é mais possível. Eu ainda insisto na mesma máxima, na mesma jornada, porque quando comecei a cantar essa identidade, a cantar os valores culturais desse povo, existia identidade cultural. Hoje, essa identidade já foi destruída pela proposta moderna ou pós-moderna, por intermédio dos meios de comunicação, da vontade política via meios de comunicação, porque esses valores deveriam ser dissipados.
É o que aconteceu com o seu amigo marceneiro, que durante a nossa conversa usou o termo “check up”?
Ele disse aquilo de uma maneira repetitiva, porque ouviu falar. Mas propor aquilo, não é da natureza íntima dele. Ele não tem o perfil desse entreguismo cultural.
Em Curvas do Rio (1978), você canta: “Sou imbuzêro das bêra do rio”. O que isso significa para você?
É a questão da grande baladinagem, é a questão da grande resistência. Sou “imbuzêro das bêra do rio”, é aquele imbuzêro que está dando fruto todo o ano, o rio com todas as enchentes não o levou. Ele tem raízes profundas, fincadas no seio do solo, da terra. Eu estou na beira do rio, o rio vem, com a sua enchente, me cobre de água, pensa que me matou, mas não me leva e nem me mata.
É uma resistência?
É uma resistência a tudo aquilo que nos agride. É resistência a toda onda, vento, viração, monção, tremor de terra, enchente, a toda turbulência de água que quer nos arrancar do solo, que quer tirar os nossos valores. É a resistência. Eu sou eu, e alguém quer que eu não seja mais eu. Eu resisto em ser eu: não quero ser você. Eu quero ter as minhas coisas, não me tire aquilo que é meu. Eu não quero ter a pátria de ninguém: eu quero ter a minha pátria. Eu não quero conhecer as praias de ninguém: quero estar na minha praia. Eu não quero a comida de ninguém: quero comer o meu pequeno repasto.
Você não quer a língua de ninguém?
Não aceito a língua de ninguém. Basta-me o meu vernáculo, rico, belo e culto da língua portuguesa. Aldo Rebelo (PCdoB-SP), amigo meu, tem uma tese bela, Culta, Bela e Ultrajada, que trata da invasão da língua inglesa no Brasil. Ele fez esse projeto de Lei, em defesa da língua, mas Brasília não aceitou. O Brasil tem essa babaquice, desses intelectualoides, desse abricionismo, de ser aberto às outras culturas. As culturas têm de ser fechadas. Aquilo que for conveniente para ser absorvido, que seja. Agora, afrouxar-se, porque a cultura de fora é de rico, é de uma moeda forte, isso é coisa de sub-raça, gente que não tem miolo, não tem envergadura, que não constitui raça
Por que não dar entrevistas?
Eu fui de 1968 até 1998 dando entrevista para televisão, jornais, Pasquins, grandes rádios, rádio fuxico, que, de tão fraquinha, na periferia ninguém nem pegava. Foi entrevista para todo canto, falei o que tinha para falar. Chegou um tempo em que esgotou. E por outro lado, a entrevista cessou pelo problema com a questão da imagem. A vinda da imagem televisiva, não sei se é assim que se diz, eu também não me interesso em aprender essa linguagem, veio para causar danos, sobretudo, à nossa língua portuguesa. A imprensa televista é tremendamente irresponsável. Qualquer mocinha dessas, de bundinha arrebitada, loirinha, bonitinha, perninha roliça, acham-na, os senhores donos do sistema, diplomada o bastante para poder dirigir um programa de televisão para crianças ou adultos. E quando abre a boca, é só para dar coice, e todo mundo engole aquilo, a ponto de chegar a uma nação como essa. Esses caras só querem imagem, não querem notícia nenhuma.
Você não aceita que vídeos com a sua imagem sejam postados no Youtube?
Eu nunca me interessei pela divulgação da minha obra, nunca tive a intenção de levá-la a público nenhum. Minha obra é limpa, pura, bonita, brasileira, autóctone, de um poeta puro. Ela tem de se impor por seu valor próprio.
Seu último disco é de 1995. Por que você não grava um disco novo?
Eu nunca quis gravar discos na minha vida. A música, quando vai para o disco, ela morre. Eu sempre achei que as pessoas deveriam se reunir e mostrar sua arte, sua canção, como era nos tempos antigos, em saraus, encontros. Não precisa disco nem nada. Mas gravei o primeiro disco e, depois, virou um horror, um clamor, um petitorium por parte de um pequenino público. Agora, chegou essa quadra, esse tempo raivoso, do mar do Caribe, o mar dos piratas. A pirataria no mundo é um horror. Então, eu encerrei, não gravo mais disco.
O DVD não será lançado?
Não vai mais sair porque ele alcançou uma velhice precoce. Perdeu o sentido.
Por que você nunca compôs contra a ditadura?
Eu atravessei toda a ditadura militar, compondo e assistindo ao protesto de todos os cantos, não só do Brasil, mas em todo o continente latino-americano. Respeito o protesto dos outros, não aceitei a ditadura, mas nunca senti vontade de protestar, porque eu não tinha contra o quê protestar. A democracia é uma das maiores mentiras que os gregos inventaram. Governo do povo? Isso não existe. Olha que paradoxo: quem é que o povo vai governar? Povo é um conjunto, é multiplicidade de indivíduos. O povo vai governar uma pessoa, ou o povo é que tem de ser governado? Um povo tem de ser governado por alguém. Não estou querendo dizer que nós devemos ser governados pelos militares. Deus que me livre! Mas a democracia também não resolve. O que está acontecendo hoje no Brasil é uma tremenda ditadura velada. Há um silêncio lascado de intelectuais, de todo um pessoal que protestava, que tinha de acabar com a ditadura, que o Brasil precisava de democracia. O meu governo preferido, Ariano Suassuna está comigo, é a Teocracia, regime que os hebreus tiveram por longo tempo: Deus como presidente da República, por intermédio de seus interlocutores, os profetas.
Hoje, você é tema de diversos trabalhos, teses acadêmicas. O que acha?
É importante demais, porque cada tese, cada ensaio, cada monografia sobre o meu trabalho, minha canção, minha música, é bom para o Brasil, para o meu povo. Esse povo que vira a cara, o tempo todo babando, boca aberta, olhando para os Estados Unidos, para a cultura americana, que não tem cultura nenhuma. À medida que o meu trabalho for estudado, o povo tem condição de ter notícia desse trabalho, de se voltar para ele e descobrir, aprender a respeitar seus tesouros, seus valores, suas coisinhas.
Em produções acadêmicas, você é comparado a Guimarães Rosa. Tem até uma comparação com o Alberto Caeiro.
Eu não sabia do Caeiro, é sério isso? Eu já vi algumas citações de doutores da área de Letras, fazendo analogias da minha poética com Castro Alves. É uma honra imensa. Poxa, Castro Alves é o maior cantor do continente americano! Agora, com Guimarães, eles sempre fazem. Certa vez, li um ensaio tão bonito, falando sobre mim e sobre Guimarães, mostrando a grandeza das almas minha e dele, da dignificação que nós dispensávamos à cultura pastoril, ao vaqueiro, ao tanger do gado, dos bois dos rebanhos, aos cães e gato, às travessias do rio cheio. Aonde é que me botaram, né?
Publicada no Zero Hora (22/08/09).

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