sábado, 13 de fevereiro de 2010

"A vida é assim: a vida é pouca"

Em entrevista à FOLHA, o poeta maranhense Ferreira Gullar reflete sobre sua produção literária e revela que o poema nasce da surpresa

Quando José Ribamar Ferreira compôs “A Luta Corporal”, livro que ele considera como a sua estreia na literatura, não faltaram críticos para apedrejar a obra e o autor: “Eu fui chamado de vigarista e de maluco!”, recorda o poeta, em meio a boas gargalhadas.
Considerado por Vinícius de Moraes como “o último grande poeta brasileiro”, Ferreira Gullar, que não lança um livro de poemas inéditos desde 1999, está prestes a saciar a curiosidade dos seus leitores, com a publicação de “Em Alguma Parte Alguma”. Em 2010, quando o poeta e crítico de artes completará oitenta anos de idade, a editora José Olympio pretende realizar uma série de exposições, debates e homenagens, além de lançar uma biografia do autor e uma nova edição de seus poemas em cordel, compostos na década de 60.
Em seu apartamento, em Copacabana, no Rio de Janeiro, Ferreira Gullar fala sobre a gênese do poema, a necessidade de escrever poesia engajada e justifica o seu fazer literário: “A poesia existe porque a vida é pouca.”

Você tem noção de que é o maior poeta brasileiro?
Eu acho ótimo que as pessoas digam isso. É bom ser acolhido, reconhecido, porque eu escrevo para os outros. Mas eu perguntaria da mesma forma como o Drummond perguntou uma vez: “Qual é a régua que usaram para medir isso?”.
Qual é o seu objetivo como poeta?
Ajudar o leitor a estar bem na vida, a ter uma visão da vida mais rica, mais generosa. Eu acho que o poeta inventa a vida. Todos nós nos inventamos e reinventamos a vida. O cara nasce, ele não é nada, não é ninguém. Ele não tem nome, não sabe falar, não tem noção de nada. Depois, passa a ser educado. As outras pessoas que já existiam ajudam a dar uma noção da realidade a ele, que, com o tempo, começa a se inventar, a pensar por sua conta, a discutir o que é ensinado. A vida é assim: a vida é pouca. E a poesia faz parte dessa invenção da vida. A poesia existe porque a vida é pouca.
Você chega a demorar até uma década para lançar um livro de poesia, mas sempre está publicando livros teóricos sobre arte. Qual a diferença em compor estes dois gêneros?
Eu não decido quando vou escrever um livro no terreno da poesia. Escrevi, recentemente, um livro sobre a arte concreta e neoconcreta. O livro tinha um objetivo, eu sabia o que iria escrever. A poesia não é assim. Eu não planejo. De repente, surge um poema, alguma coisa da vida me surpreende, me espanta, me maravilha, eu me questiono e resulta em um poema. Esse poema vai se juntar a outro, que vai compor um livro. Tem unidade? Tem. Não foi planejado, mas tem unidade. A unidade sou eu mesmo, porque na hora em que a vida me espanta, a resposta que eu dou tem a ver com as coisas que estou pensando. É a mesma pessoa que está respondendo aqueles espantos, aquelas surpresas.
Como é a gênese do poema?
Em geral, o que deflagra o poema sempre é uma emoção. O poema sempre nasce quando algo me surpreende. Às vezes, eu escrevo um poema e, depois de meses, quando releio o poema para consertar alguma coisa, daquele mesmo poema nasce um outro, como se fosse um galho, uma outra coisa inesperada. Não é só a vida que surpreende a gente. A própria poesia também surpreende a gente. E eu sempre me emociono, porque é a descoberta de um lado inesperado das coisas.

Em qual poema a emoção foi mais intensa?

O poema em que eu fiquei mais tempo nesse estado foi o Poema Sujo. Há certos poemas em que eu fico meia hora, até mesmo um dia, em um estado especial que me faz escrever o poema. Mas passar meses, emocionado, como no caso do Poema Sujo, foi inesperado. Isso nunca tinha acontecido antes, nunca aconteceu depois e eu acho que dificilmente voltará a acontecer.

Você é muito exigente com seus poemas?
Eu sou muito exigente com o que eu escrevo. Até aquilo ser dado como pronto, demora. E mesmo que não demore tanto, passa por um crivo de muito rigor. Para escrever bobagem, eu não deixo nascer. Como qualquer pessoa, estou sujeito a entrar por um descaminho qualquer. Eu não tenho complacência comigo. É preferível escrever dois poemas bons, do que escrever dez mais ou menos. O livro não precisa ser grande: ele tem que ser bom.

Gullar, como é que você analisa as críticas que fizeram sobre as suas obras? A crítica sempre foi justa com você?
Quando eu publiquei “A Luta Corporal”, eu fui chamado de vigarista e de maluco (risos)! A crítica se dividiu. Uns diziam que era um livro genial, que iria mudar a poesia brasileira, e outros afirmavam: “Esse cara é um vigarista!”. Houve críticos de prestígio que escreveram contra o livro e, depois, se arrependeram. Mas eu entendo. Eu também já errei, opinando sobre pintores, fazendo crítica de arte. Por muitas vezes, fui injusto com um ou outro artista. Eu sou um crítico rigoroso com relação à arte contemporânea. Na maioria das vezes, acho que não é arte.

Por que não compor crítica literária?
Eu não gosto de escrever sobre literatura. Eu não me considero um crítico literário. Não gostaria de ser critico literário. Acho que não condiz com a minha condição de poeta e de escritor, escrever sobre a poesia dos outros, criticar a poesia dos outros. Não tem cabimento fazer isso.

A falta de engajamento político na literatura contemporânea é uma característica boa ou ruim?
Estar engajado ou não estar engajado politicamente é uma opção de cada escritor. Eu estive engajado politicamente em um momento em que a coisa política era muito presente no País. Havia a luta pela reforma agrária, pela reforma da sociedade. Hoje, isso não está na pauta. Se alguém quiser fazer poesia engajada, tudo bem. É uma opção. Não é obrigado a fazer, nem é crime fazer.

O povo brasileiro é um bom público de literatura?
Não é como deveria ser. Um País do nosso tamanho, com uma população de quase 190 milhões, deveria ter um público maior. Mas está melhorando, e eu acho que, pouco a pouco, esse público vai se ampliando. Essas coisas são muito difíceis. Não é uma coisa para acontecer de repente. Não há uma fórmula para resolver isso.

Publicada na Folha de Londrina (07/05/09).

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