sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O ano ruim de J. M. Coetzee

O último romance do Nobel sul-africano J. M. Coetzee poderia ter sido transformado em um livro de ensaios ou até mesmo em um livro de crônicas. Mas o ganhador de dois Booker Prize não abriu mão de suas deliciosas personagens aparentemente vazias, nem do gênero que domina.

“Diário de um ano ruim” é na verdade um romance composto por três livros. Cada página está dividida por linhas pontilhadas ora em duas, ora em três seções. Na primeira seção, Coetzee organizou os filosóficos ensaios articulados pelo seu alter ego, o veterano escritor Señor C, que, a pedido de um editor alemão, está produzindo um livro sobre suas opiniões, abarcando o período de 12 de setembro de 2005 a 31 de maio de 2006.

Nas outras duas seções de cada página, como se fossem notas de rodapé, Coetzee delimita o envolvimento de três personagens, que até então eram cordiais vizinhos no edifício Torres Sydenham: uma sensual secretária filipina, Anya, contratada pelo escritor para digitar suas idéias em seu apartamento; seu companheiro ciumento – o vilão do livro –, Alan; e o renomado literato Señor C. O enredo da obra é simples. Alan, o ciumento, imagina que sua mulher esteja seduzindo o escritor – o que é verdade. Em conversa com ela, Alan sugere um plano para roubar o dinheiro de Señor C. A proposta do vilão, de roubar um velho e solitário escritor não seduz a secretária, que passa a reavaliar o homem com quem está vivendo.

O envolvimento entre a tríade de personagens é todo narrado em primeira pessoa pelas próprias personagens, a partir de um recurso muito utilizado em produções cinematográficas, em que os núcleos da história se desenvolvem independentes. Na literatura, a apropriação de Coetzee exige que o leitor defina uma estratégia de leitura.

Caso resolva seguir a ordem das seções, lendo uma página inteira por vez, o leitor desavisado pode se aborrecer facilmente. Afinal, a narrativa de cada seção atravessa outras páginas e o sujeito, por muitas vezes, é obrigado a retornar à página anterior para retomar o raciocínio do romance ou dos ensaios. Uma segunda opção é acompanhar apenas uma das seções e ignorar as demais. Embora as duas estratégias revelem a história de uma mesma forma, é mais prazeroso seguir as veredas do desconforto, acompanhando as três seções em uma mesma página.

Entre as posições de Señor C, que assim como J. M. Coetzee também é um literato sul-africano radicado na Austrália, não faltam reflexões sobre a política dos Estados Unidos, da Austrália e da África. Em seus ensaios políticos, que chegam a lembrar os ensaios do lingüista Noam Chomsky, Señor C critica a pseudo liberdade dentro do regime democrático, avança sobre figuras políticas como Tony Blair e Richard Cheney e disserta sobre a função do Estado.

Em alguns momentos, como no capítulo dedicado às atrocidades cometidas na base militar de Guantánamo, Coetzee distancia-se de Chomsky e se aproxima da ironia das crônicas machadianas do final do século XIX, quando Machado de Assis escrevia sob o pseudônimo de Lélio.

Na maioria de suas obras, o Nobel sul-africano é sempre cuidadoso com a forma com que produz suas críticas. Em sua obra-prima, Desonra (1999), Coetzee exibe a guerra de territórios, a violência e os problemas sociais na África pós-apartheid, com críticas artisticamente romanceadas. Já em “Diário de um ano ruim”, a crítica está cercada no espaço do próprio livro, numa voz explicitamente engajada de Coetzee.

“Diário de um ano ruim” não é apenas uma compilação de ensaios sobre política, de um Nobel intelectual. Escarafunchando as atitudes de figuras públicas e de cidadãos comuns, J. M. Coetzee transforma a escória dos seres humanos, em uma profunda obra de arte.

Autor: J. M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 39,00 (241 págs)
Avaliação: Bom

Publicada em O Diário do Norte do Paraná (17/12/08).

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